BOI PARA GUILHERMINO
"O boi de março e sua baba"
Guilhermino César
Carlos Felipe Moisés
O boi sabe da baba que escorre, sabe
da vida inútil que erra e em si não cabe.
O boi sabe pisar a terra como quem flutua
entre o remorso alheio e a campa nua.
O boi sabe do peso do seu casco errante
e do lago perdido num olhar distante.
O boi sabe, amoroso, raspar o chão
e ruminar na mesma palha sonho e coração.
O boi sabe esperar paciente o que não vem
e mesmo que viesse já viria sem.
O boi sabe, afinal, que a baba escorre
e fica, e em volta o dia (como tudo) morre.
Mais não sabe o boi e nem saber precisa.
Já lhe basta a afagar o dorso a mansa brisa.
In: MOISÉS, Carlos Felipe. Subsolo. São Paulo: Massao Ohno, 1989
RATAZANA
Carlos Felipe Moisés
É ódio ou brisa
o que lhe escorre
entre a baba
e as patas sutis
aquém e além
do focinho
enviesado?
Barata, perce-
Vejo, aranha, noz
moscada, pólen:
os olhos miúdos
destilam
o puro gozo de roer
a própria alma
enquanto
o fino rabo se alteia
e foge
e aponta
para o teto esburacado.
LOBO
Carlos Felipe Moisés
Calado
abraça a neblina
e cerra os olhos
como quem desmaia.
Púrpura, mágoa
sem remédio,
as patas enredadas
em silêncio e lama:
tudo em volta é solidão
doçura.
E ninguém sabe
de onde vem
nem como
o uivo alucinado
que lhe sai da boca
e rasga a noite
como um coração
que arde.
O GRITO
Donizete Galvão (1955-2014)
O porco guincha
e sob a pata dianteira
sai a golfada de sangue
que enche a bacia.
Horas depois,
pronto o chouriço,
comemos o sangue preto,
as tripas, o grito.
DEFORMAÇÃO
Donizete Galvão
eh pomba suja
a urubuzinha de metrópole
ratazana
ávida por dejetos
bebedora de água preta
aí está você:
uma chapa
uma pasta
de pena e sangue
milhares de vezes
vai-se repetir sua morte
sob os pneus
eh pomba lerda
viu o que a cidade lhe fez?
Bem feito para você.
Viu o que a cidade nos fez?
A SERPENTE
|
Caligrama de Apollinaire |
Guillaume Apollinaire (1880-1918)
Tradução de Álvaro Faleiros
Sei que te obstinam as beldades
e que nelas com acuidade
exerceu tua crueldade!
Cleópatra, Eurídice, Eva,
Sei de outras três em tua leva.
PLUTÃO
Olavo Bilac (11865-1918)
Negro, com os olhos em brasa,
Bom, fiel e brincalhão,
Era a alegria da casa
O corajoso Plutão.
Fortíssimo, ágil no salto,
Era o terror dos caminhos,
E duas vezes mais alto
Do que o seu dono Carlinhos.
Jamais à casa chegara
Nem a sombra de um ladrão;
Pois fazia medo a cara
Do destemido Plutão.
Dormia durante o dia,
Mas quando a noite chegava,
Junto à porta se estendia,
Montando guarda ficava.
Porém Carlinhos, rolando
Com ele às tontas no chão,
Nunca saía chorando,
Mordido pelo Plutão...
Plutão velava-lhe o sono,
Seguia-o quando acordado:
O seu pequenino dono
Era todo o seu cuidado.
Um dia caiu doente
Carlinhos... junto ao colchão
Vivia constantemente
Triste e abatido, o Plutão.
Vieram muitos doutores,
Em vão. Toda a casa aflita,
Era uma casa maldita,
Era uma casa de dores.
Morreu Carlinhos... A um canto,
Gania e ladrava o cão;
E tinha os olhos em pranto,
Como um homem, o Plutão.
Depois, seguiu o menino,
Seguiu-o calado e sério;
Quis ter o mesmo destino;
Não saiu do cemitério.
Foram um dia à procura
Dele. E, esticado no chão,
Junto de uma sepultura,
Acharam morto o Plutão.
Olavo Bilac,. Poesias Infantis. In: Bilac, Olavo. Obra reunida, (org. e introdução de Alexei Bueno). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 310-311.
REVOADAS
Rosana Piccolo
Não se sabe de onde vêm, frágeis criaturas da fuligem
de sobreaviso nos postes. Serão manadas ainda, harpias
importunas, aos surtos, sem carteira assinada.
Um pombo, dois pombos, treze milhões de arrulhos
rasantes, conurbanos, vagas de papel picado sem leitura.
Adensarão lobbies e ágoras.
Adensarão cadeias e pavilhões de sangue, donde vêm?
A noite, que tudo acoberta, recolhe a mais alva
esquadrilha. E embute outro poste, outro pombo, bola
cilenta no varal sem luz.
VACA
Federico García Lorca
A Luis Lacasa
Tradução de Rubens Zárate
Foi tombada a vaca ferida;
árvores e córregos trepavam por seus cornos.
Seu focinho sangrava pelo céu.
Seu focinho de abelha
sob o lento bigode da baba.
Um alarido branco pôs em pé a manhã.
|
Lorca, por Amparo Climent |
As vacas mortas e as vivas,
rubor de luz ou mel de estábulo,
baliam com os olhos entornados.
Que saibam as raízes
e aquele menino que afia sua navalha
que já podem comer a vaca.
Acima empalidecem
luzes e jugulares.
Quatro cascos tremem no ar.
Que saiba a lua
e essa noite de pedras amarelas:
que já se foi a vaca de cinzas.
Que já se foi balindo
pela queda dos céus endurecidos
onde os bêbados se alimentam de morte.
O ALBATROZ
Charles Baudelaire
Tradução de Delfim Guimarães
Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num voo triunfal, numa carreira audaz.
Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!
Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.
O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!
ETU, O ANTÍLOPE
(poesia anônima africana)
Tradução do espanhol: Rosana Piccolo
Belo antílope de colo esbelto.
Tuas ancas valem vinte escravos.
Tuas patas, mais do que trinta empregados.
Mais elegante é teu colo do que uma tábua sagrada.
Igual a um nobre caminhas, agitando
o mato como sinos.
Perfeitas
são as insígnias
de tua face,
e audazes,
como as do rei de Obomossô.
Teu corpo mergulha na alvura com a qual Deus te honrou
Alegra-se o caçador ao avistar o senhor do branco.
Ao te matar não me contento, até não achar
no monte o teu corpo.
A mulher, grávida, quer tua pele.
Com ela, ao cobrir-se, terá uma criança bela.*
*Crença comum entre as mulheres iorubás.
Imagem de animal, pelo visionário William Blake (1757-1827)
O TIGRE
William Blake
Tradução de Ângelo Monteiro
Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?
Em que longínquo abismo, em que remotos céus
Ardeu o fogo de teus olhos?
Sobre que asas se atreveu a ascender?
Que mão teve a ousadia de capturá-lo?
Que espada, que astúcia foi capaz de urdir
As fibras do teu coração?
E quando teu coração começou a bater,
Que mão, que espantosos pés
Puderam arrancar-te da profunda caverna,
Para trazer-te aqui?
Que martelo te forjou? Que cadeia?
Que bigorna te bateu? Que poderosa mordaça
Pôde conter teus pavorosos terrores?
Quando os astros lançaram os seus dardos,
E regaram de lágrimas os céus,
Sorriu Ele ao ver sua criação?
Quem deu vida ao cordeiro também te criou?
Tigre, tigre, que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão, que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?
MAIS POEMAS SOBRE ANIMAIS
VIRGÍLIO
Velho feliz! Continuarão teus campos a ser teus!
|
Pastores, no traço de Marcelo Lima |
E bastam para ti, embora cubram pedras nuas
e um paul de limosos juncos todos estes pastos!
Não buscarão novas pastagens as ovelhas prenhes,
nem sofrerão o mau contágio de um rebanho próximo.
Velho feliz! Aqui, em meio a rios conhecidos
e entre sagradas fontes, gozarás sombra e frescor!
Ali a sebe, na raia do vizinho campo
pousam abelhas de Hibla sobre as flores do salgueiro,
ao sono te convidará com um leve sussurrar.
Junto a alta rocha cantará o desfolhador às brisas,
mas sem que ao mesmo tempo as roucas pombas, teu cuidado,
e a rola cessem de gemer no topo dos outeiros.
Públio Virgílio Maro (70 aC.-19 aC), poeta romano. Bucólicas. Égloga I, versos 46 a 58. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, 1982.
SEXTO PROPÉRCIO
ELEGIA, III, 2
|
Galateia, de Salvador Dalí |
Voltemos, enquanto isso, ao cerne do nosso canto:
alegre-se a garota ouvindo o som costumeiro.
Dizem que Orfeu, com a lira trácia, deteve
as feras e reteve impetuosos rios.
Contam que as pedras do Citéron, atraídas a Tebas pela arte,
espontaneamente se juntaram a pedaços de muro.
E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,
aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados:
admirar-nos-emos se, propícios Baco e Apolo,
bandos de garotas cultuarem palavras minhas?
Sexto Aulo Propércio (43 a.C-17), poeta romano. Elegia III-2. (Tradução: Maria da Glória Novak).
SONETO ROMANO COM GALATEIA
A Valdomiro Santana
Quin etiam, Polypheme, fera Galatea sub Aetna
Ad tua rorantis carmina flexit equos.
Sexto Propércio (Elegia III, 2)*
Florisvaldo Mattos
Não sou Orfeu, não sei deter os rios,
Nem toco flauta no portão do Inferno,
Para tirar do Amor grilhões sombrios
E postá-lo na margem em que aderno.
Não sou Camões; Calíope não me ensina
Os caminhos do mar. Vou para o bosque.
Sei que irão perguntar-me adiante quousque
Tandem há de durar a minha sina.
Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,
Guarde-os perto do campo de azaleia.
Se mais seguros, lá, mais bem guardados.
Oh, Propércio, avise aí a Polifemo
E me deixe no Etna com Galateia
Montada em seus cavalos orvalhados.
(Salvador/BA, manhã de 14/10/2018 (inédito).
*”E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,
Aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados”.
(Sexto Propércio, Elegias, trad. Maria da Glória Novak, 1992).
CHARLES BAUDELAIRE
O GATO - I
CHARLES BAUDELAIRE
O GATO - II
De seu pelo louro e tostado
Um perfume tão doce flui
Que uma noite, ao mima-lo, fui
Por seu aroma embalsamado.
É a alma familiar da morada;
Ele julga, inspira, demarca
Tudo o que seu império abarca;
Será um deus, será uma fada?
Se neste gato que me é caro,
Como por ímãs atraídos,
Os olhos ponho comovidos
E ali comigo me deparo,
Vejo aturdido a luz que lhe arde
Nas pálidas pupilas ralas,
Claros faróis, vivas opalas,
Que me contemplam sem alarde.
O CORVO
Edgar Allan Poe
Tradução de Fernando Pessoa
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..."
E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento,
"Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demónio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse.
"Parte! Torna à noite e à tempestade!
Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Imagens: O Corvo, de Poe, por Édouard Manet
HISTÓRIA D'UM CÃO
Luís Guimarães Júnior (1845-1898)
Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos d'um camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava...
«Adeus!» - me disse - e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
«Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicarás os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A sua cauda - caminhava errante
À luz da lua - tristemente uivando
Toussenel, Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo.
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:
Gabava o "steamer" que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota breve do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e - creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.
E respirei! «Graças a Deus! Já posso»
Dizia eu «viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo».
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E - de cansado - foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede inoportuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguiu-me. No entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo - e com furor remamos.
Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei à terra - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão, profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas, moribundo.
Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo
Duas vidas tivera - duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri, - abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, - e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
O MORCEGO
Augusto dos Anjos (1884-1914)
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
A UM CARNEIRO MORTO
Augusto dos Anjos (1884-1914)
Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!
Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram!
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
Augusto dos Anjos. Eu e Outras Poesias = Edição Especial
Revista e Ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
A PANTERA
Rainer Maria Rilke (1875-1926)
Tradução de José Paulo Paes
(No Jardin des Plantes, Paris)
Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.
O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.
Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. – Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha –
e se apaga quando chega ao coração.
Pablo Picasso (1881-1973). Touro Morrendo, 1934
O TOURO DA MORTE
Rafael Alberti (1902-1999)
Tradução de Manuel Bandeira
Negro touro saudoso de feridas,
Chifrando-lhe à água azul suas paisagens
E revisando cartas e equipagens
Aos trens que partem rumo das corridas:
Que sonhas em teus cornos, que escondidas
Ânsias lhes arrebolam as viagens,
Que sistema de regos e drenagens
No mar ensaiam tuas investidas?
Nostálgico de um homem com espada,
De sangue femoral, gangrena feia,
Já ninguém há de deter-te o passo forte.
Corre, touro, ao oceano, investe, nada,
E a um toureiro de espuma e sal e areia,
Já que intentas ferir, fere e dá morte.
Fonte: Bandeira, Manuel. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado – como parte de uma elegia, “Verte y no verte”, dedicada a Ignacio Sánchez Mejías – em 1935.
Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 1899-Genebra, 1986)
O OUTRO TIGRE
And the craft that created a semblance
MORRIS: Sigurd the Volsung, 1876.
Jorge Luis Borges (1899-1986)
Tradução de Josely Viana Baptista
Penso em um tigre. A penumbra exalta
A vasta Biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Em seu mundo não há nomes nem passado,
E não há futuro, só um instante certo.)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
Dos olores o olor da alvorada
E o olor deleitável do veado;
Entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob essa pele esplêndida que vibra.
Inutilmente interpõem-se os convexos
Mares e os desertos do planeta;
Desta morada de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Oh, tigre das ribeiras do rio Ganges.
Corre a tarde em minha alma e pondero
Que o tigre vocativo de meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
Não o tigre fatal, joia nefasta
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de amor, de ócio e de morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima uma tribo de búfalos
E hoje, 3 de agosto de 59,
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjeturar sua circunstância
Torna-o ficção da arte e não criatura
Animada das que andam pela terra.
Procuraremos um terceiro tigre.
Como os outros, este será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Pisa a terra. Sei disso, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em procurar pelo tempo da tarde
O outro tigre, o que não está no verso.
A PANTERA
Jorge Luis Borges
Tradução de Josely Viana Baptista
Atrás das fortes grades a pantera
Repetirá o enfadonho itinerário,
Que é (mas não o sabe) seu fadário
De negra joia, aziaga e prisioneira.
Vão e vêm aos milhares, em desfiles
Infindáveis, mas é só uma e eterna
A pantera fatal que em sua caverna
Traça a reta que um eterno Aquiles
Traça no sonho que sonhou o grego.
Não sabe que há prados e montanhas
De servos cujas trêmulas entranhas
Deleitariam seu apetite cego.
Em vão é vário o orbe. A jornada
Que cumpre cada qual já foi fixada.
A UM GATO
Jorge Luis Borges
Tradução de Josely Vianna Baptista
Não são mais silenciosos os espelhos
Nem mais furtiva a aurora aventureira;
Tu és, sob a lua, essa pantera,
Que divisam ao longe nossos olhos.
Por obra indecifrável de um decreto
Divino, buscamos-te inutilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
Tua é a solidão, teu o segredo.
Teu dorso condescende à morosa
Carícia de minha. Sem um ruído,
De eternidade que ora é olvido,
Aceitaste o amor dessa mão receosa.
Em outro tempo estás. Tu és o dono
De um espaço cerrado como um sonho.
Ilustração: Andy Warhol, Gato, 1985
AO COIOTE
Jorge Luis Borges
Tradução de Josely Vianna Baptista
Século a século a areia infindável
Dos diversos desertos tem sofrido
Teus passos numerosos e o ganido
De chacal cinza ou hiena insaciável.
Por séculos? Eu minto. Essa furtiva
Substância, o tempo, não te alcança, lobo;
Teu é o puro ser, teu é o arroubo,
Nossa, a torpe vida sucessiva.
Foste um latido quase imaginário
Nos confins do Arizona, nessa areia
Onde tudo é confim, e se incendeia
Teu perdido latido solitário.
Símbolo de uma noite que eu possuía,
Seja teu vago espelho esta elegia.
OS CISNES
Júlio Salusse (1872/1948)
A vida, manso lago azul, algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós, constantemente,
um lago azul, sem ondas, sem espumas.
E nele, quando, desfazendo brumas
matinais, rompe um sol vermelho e quente,
nós dois vogamos indolentemente
como dois cisnes de alvacentos plumas.
Um dia, um cisne morrerá por certo.
Quando chegar esse momento incerto
no lago, onde talvez a água se tisne,
- que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca ao lado de outro cisne.
"Meu pai foi rei!"- "Foi!" (MB). Os Sapos, de Gustave Moreau
OS SAPOS
Manuel Bandeira (1886-1968)
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
Meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
(Manuel Bandeira, Carnaval; Rio, 1919).
SG: "a cor vermelha chega a ser sonora / neste pavão pomposo".
PAVÃO VERMELHO
Sosígenes Costa (1901-1968)
Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.
Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
(1937-1959)
SONETO AO ANJO
Sosígenes Costa (1901-1968)
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.
Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.
Só tu agora colhes azaleia
e os cintilantes cachos da azureia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.
Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.
(1930)
GARÇAS
Sosígenes Costa
Como um bando de preces japonesas
Que se desatam sob o céu de Nikko,
Garças em flor, de maravilhas presas,
Fogem pr´a as brotas do capuz de um pico.
Agora tudo é lindo! Que belezas
As régias garças no bailado rico…
Plumas enconcham – pérolas retesas
Que tanto haurir… Daqui donde me fico.
E tão bailantes! Sobre o amor do musgo,
Com quem por causa delas sempre rusgo,
Sinto desejos de bailar assim…
Mas sou tão verme! É que do baile ao friso,
Pr´a se imitar as garças é preciso
Ter graça azul em um corpo de jasmim!
Belmonte, 1920
O CISNE
Sosígenes Costa
Na indolência de um deus, lá vem à gruta, ao lago
O cisne. O azul de golpe empalidece! Tudo
De pérolas quer ser e tudo fica mudo
Ante tanto brancor, brancor que aos golpes trago.
Agita a pluma, dobra o colo… é de veludo!
Põe frisos n´água e segue a machucar (que estrago!)
Um nenúfar… Entanto, a linfa o espelho mago,
Sem se importar da flor que se quebrou. Estudo
Agora o cisne e quanto é o branco vejo esteta.
No cisne o branco é tudo. O cisne mais parece
O amor da estrela, o amor do alvor, o alvor da prece!
Nisso… Ele canta… E após deixar almas de poeta
Em cada som que tange, o cisne morre… Parte,
- O cisne, taça branca em que bebe a arte.
Belmonte, 1920
SONETO DO CAVALO
Cyro de Mattos
Músculo, suor, galope, cadência;
vento, porteira, campina, relincho.
No passo picado rude elegância,
maneira de cascos: trote, compasso.
Incansável crina em qualquer distância;
se selvagem, vence quem vem com o laço.
Nervoso fere com uma espada ígnea,
coito na seda, tremura, entrelaço.
Na chuva grossa, forte estiagem,
que de melhor pra montar no cavalo?
A amizade? Na manhã a aragem?
Na sela agora surgem do que falo
coisas de ontem como se hoje fossem...
ele, relva quadrúpede, o cavalo.
BURRO
Cyro de Mattos
O burro carrega
fardos e espumas.
O burro carrega
sonhos e tropeços.
O burro carrega
sombras da estrada.
O burro carrega
o verde das distâncias.
O burro carrega
a hora da agonia.
O burro carrega
o ventre de tudo.
O burro carrega
a imemorial seiva.
O burro carrega
a trama na cangalha.
O burro carrega
mapa nos cascos.
O burro carrega
farol na encruzilhada.
O burro carrega
passos inconscientes.
O burro carrega
a solidão derrotada.
Imagem; foto de burros em serviço, como animais de carga
BLOCO DOS BICHOS
Cyro de Mattos
Neste brinquedo que parece sonho
o estandarte é levado pelo pombo,
a sanfona, tocada pelo porco,
e o pandeiro, pelo galo que é rouco.
Com o desfile formado bate o bombo,
o burro bem na frente de Rei Momo,
o bode baforando anéis de fumo,
o cachorro no gato dando tombo.
Sol canta, a lua dança, o sapo diz
que até que enfim o macaco é feliz,
de mãos dadas com dona onça vai e vem.
E com o rato, em mil pulos de alegria,
o pavão nessa rica fantasia,
o povo da cidade vai também.
SONETO DO REINO ANIMAL
Cyro de Mattos
Aranha, abelha, ariranha,
andorinha, anum, azulão,
gato, bode, borboleta,
galinha, cavalo, cão.
Bicho, bichinho, bichão,
lá na selva, pela casa,
à noite na escuridão,
na clareza do verão.
Foi Deus quem assim os fez
nossos parceiros naturais.
Seja no alto, em qualquer chão,
morando neste planeta,
cada qual tem sua vez
de viver na criação.
DOS BICHOS COM AFETO
Cyro de Mattos
Meu cão na canção uivando,
músculos me festejando.
Mãos de meu gato tocando
no meu corpo fatigado.
Cantava em mim o canário
que eu deixei pelo cenário
do sem fim, doce manhã,
que com o sol chegava às seis,
para me tornar um rei.
Tinha meu galo que vinha
comer na minha mão milho.
Com esse foi que fiquei
tendo um bicho como filho
na alma sentida sem rinha.
SORTILÉGIO
Heloísa Prazeres
quase não posso sair lá fora
tomada de medos físicos dos pátios
da Bising. E quando me arrisco
vejo-o em treinos e estratégias de pedinte
enorme cauda sedutora arrasta-se
desliza sobre galhos e ocos
onde a natureza dorme e o visitante acode
avermelhado pelo sobre galhas
despidas suporta temperaturas
que me tangem do alento
no primeiro inverno fora de casa
o esquilo é meu igual
mas bem diverso ele sabe e alterna
fases mais longas de sono
reduz sonhos gosta
mais e mais de habitar o meu quintal. Acorda
e vem buscar suas migalhas
habitante como nós indistinguível
em terra alheia vive o catador
de enigma e sustento
(Heloísa Prazeres. O tempo não detém a vida, 2023)
RECANTO DAS GARÇAS
Letícia Prata
rosa rubra cobre o rosto
com seus feixes de plumas
cinza brancas marrons pretas
sua cabeça retraída
junto ao meu corpo
sua boca em busca do peixe
do sapo
soturno passos entre grades
pedra água
a confundir-me
e esse bico pontudo
em forma de lança
e esse bicho
a desvelar meu canto
e esse silêncio solto
estátua presa
a espetar-me
voo cego de ave
FRIDA
Letícia Prata
ela repousa como uma estátua
no parapeito da varanda
sabe-se divindade envolta
em pelos de textura luminosa
marrom cinza mesclada
observa e avança com
seu miado rouco e um medo
apertado nos olhos —
refugia-se entre cobertores macios
seu rabo passeia como uma antena
em compasso ritmado à espreita
do pulo certeiro
encara-me e salta —
dizem ter sete vidas
que toda bruxa tem uma
que é bicho tinhoso de garras afiadas
ela desvia e abana
transita entre objetos
(e nada derruba)
tudo capta e absorve
com sua escuta atenta
de uma analista de quatro patas
(Poemas inéditos, de Letícia Prata)
PEQUENA ARANHA
Uaçaí Magalhães Lopes
Pequena aranha, que teces?
Teces a vida ou a morte?
Que teces, pequena aranha,
meu destino, minha sorte?
Nossa vida é tão vazia.
Nossos destinos são teias,
que tecemos cada dia:
barcos singrando nas veias.
Pequenina, ao que parece,
tua teia não nos guia.
Nossa vida é que se tece
numa outra teia, ungida,
que se encontra em outra via,
para além da nossa vida.
O REI, O CEGO E OS ELEFANTES
Para o amigo Carlos Barbosa
Uaçaí Magalhães Lopes
Dispondo um Rei, mui sábio, um elefante,
a cegos que tocaram levemente.
Pediu-lhes a falar, naquele instante,
o que no toque, vinha-lhes à mente.
Primeiro um diz que a cauda é uma vassoura.
Outro compara a tromba, a uma mangueira.
O próximo, que a boca é uma tesoura
e o último a entrar na brincadeira,
afirma que um marfim é uma lança.
O Rei então percebe ali, na hora,
o quanto cada um a verdade alcança.
Pede a Tirésias, diga-lhes agora:
por que você é cego e a tudo vê?
- Com luz ou sem luz o mortal não crê!
MEU GATO
Uaçaí Magalhães Lopes
“Viens, mon beau chat, sur coeur amoureux”
Charles Baudelaire
“Prefiro os gatos aos cães não há gatos policiais”
Jean Cocteau
“O meu gato Saci é um dorminhoco”
Antonio Lopes
Por que os poetas trazem uma sina,
ter um gatinho de estimação?
Nino já veio a mim como um traquina,
minha filha o trouxe da Estação.
Assim que ele chegou tomou o lar.
Como se fosse tudo, tudo seu.
Se ele quer algo mia para o ar...
e, para ele o mundo já entendeu!
Mas, minha amada trouxe uma gatinha,
a Lina, tão fofinha, a nossa casa.
Mas, Nino, disse logo a casa é minha!
E, com sua bengala e branca luva,
encosta-se em Lina, olhos em brasa...
Rosnando ser o próprio “Manda-Chuva”!
Salvador, 17 de fevereiro de 2019.
Os últimos três foram tirados do livro: Forma & Fraga, Sonetos. Itabuna,
Bahia: Editora Mondrongo, 2020.
O SABIÁ
Uaçaí Magalhães Lopes
Um sabiá não sabia,
que nasceu para cantar
e que a vida lhe daria
cada canto em seu lugar!
Certo dia, o abençoado
viu a andorinha passar
e ficou todo assanhado,
indo logo ela cantar...
A fêmea do Bem-te-vi
ouvindo o lindo cantar,
gritou: estou bem aqui,
sem saber do sabiá,
que gritou: eu bem te vi,
indo a fêmea agasalhar!
Uaçaí Lopes. SSA, 04/02/2024, inédito.
BORBOLETAS BAIANAS
Carlos Barbosa
tomo conhecimento das borboletas baianas,
não das que vejo nos jardins,
mas daquelas que voejam em casamentos
nossas borboletas fazem sucesso
em casórios Brasil afora
viajam de avião,
em caixinhas com furos para ventilação
as borboletas são exigência de noivos românticos:
querem com elas embelezar
|
Borboleta na mente surrealista de Salvador Dalí |
suas histórias de amor
mas são caras nossas borboletas,
muito caras
precisam ser contadas
para o devido pagamento
e para tanto,
colocam as caixas por um tempinho em geladeiras:
é que assim as borboletas desmaiam
e é possível então fazer a contagem
por fim, as caixas são levadas ao pé do altar
e lá aguardam, pelo grande momento,
as sobreviventes
após o beijo do novo casal,
as borboletas são soltas
mas estão fragilizadas, tontas, combalidas
então o pessoal dá o último toque ao show:
batem nas caixas para espantar as borboletas
que se projetam no ar
em arquejo final de vida,
para morrer em seguida em pleno voo
ou onde quer que pousem,
depois de obterem o aplauso da plateia
e ares de extremo contentamento
dos nubentes,
aquele batalhão de borboletas baianas
borboletas que viajaram de avião
e desmaiaram no gelo
em suas curtas vidas de tortura e horror
para beleza e glória do amor
O DOMADOR DE PIRILAMPOS
Aleilton Fonseca
Jamais esqueço dos pirilampos
Que iluminavam a minha infância.
Eram respingos de luz nos campos
E são piscos de luz na lembrança.
Admirando, eu já contava cada
Claro rastro de brilho no ar,
O ritmo certo do acende e apaga
Que ainda me faz imaginar.
O destino dolente rasura
O passado que será futuro.
A sua garra pega e tritura
Os sonhos que rebrilham no escuro.
A luz piscante dos pirilampos
Que iluminaram a minha infância
Ainda alimenta meus encantos
E faz brilhar a minha esperança.
Poente. Lentos, silenciosos, caminho dos currais, os bois (FM)
POENTE AOS BOIS
Florisvaldo Mattos
Poente. Calcando vidro úmido da tarde,
lentos, caminho dos currais, os bois
historiam campesino silêncio de fazenda.
No olhar de melancolia e trabalho vespertino
passeia desnudo entre folhas cegas
um sacrifício comum de agrícola fadiga,
paisagem desesperada nutrindo-se
de sombras, de canção despedaçada
entre cedros e riacho.
Rústico vento sopra navalhando
biografias de pássaros camponeses
à espessura do azul macio cortando
cinzentos chifres campo couro.
De verde espuma aderida ao cerne dos minutos
com peculiar atividade de moinho
silencioso na sombra moendo sonhos,
sua boca preguiçosa os alimentos
(pranto e arbustos) na estrada rumina.
Nesta imobilidade do tempo
e das coisas umedeço minhas mãos.
Neste amargo cenário de pedra e vinho amargo,
rodeado de cercas e utensílios campestres,
meu rosto pesado umedeço.
Golpeando com asa mansa capim rasteiro,
água útil dos pastos, a cada ruído
arrasto meu coração ferido pelos sítios,
tranquilamente ando
e desando na atmosfera morna dos currais,
contagiado de espetáculo mudo de retorno
entre bestas de carga e tropeiros –
galope roto guarnecido de aflição –
cheiro rural de cascos pisando estrumes.
Com os bois (doridos bois)
na solidão profundamente sucedo.
(Florisvaldo Mattos. Reverdor, Salvador: 1965)
A BESTA SE CHAMAVA FORTALEZA
Florisvaldo Mattos
A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Paulo Mendes Campos (“Infância”)
Se do Campos a besta era Suzana,
a minha se chamava Fortaleza.
Era nos pastos que ela obedecia,
leve e serena, quase comovida,
ao gesto só de manejar a rédea,
quando queria pássaros ouvir
ou bezerros tanger para o curral,
em conluio com aragens, logo cedo,
por descampados vastos, meu tesouro.
Quero viver de novo esta harmonia
de cores, sons, aromas e sabores,
no delírio em que a tarde se desmancha,
com sussurros da brisa me avisando
que disso tudo a besta participa.
(Florisvaldo Mattos, Estuário dos dias e outros poemas. Salvador:
2016).
Pablo Picasso (1881-1973), Minotauro Moribundo, 1936
NA CASA DE ASTÉRION
Florisvaldo Mattos
Tecer no azul do céu a cor da morte
Ou no verde do mar, na branca espuma,
E até não perceber quando se arruma
A casa onde a brisa, última consorte,
Descerra a porta para o Minotauro.
Apenas ouço-lhe o ruidoso trote,
Com o trágico de Borges holofote,
Igual à solidão em que me instauro.
Ele vem devagar, de agudo chifre,
Na tarde melancólica, de sombra
Vasta, que me rodeia e que me assombra,
Passo a passo, a exigir que me decifre.
Não sou Teseu, dispenso-me do luto.
Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.
(Salvador, manhã de 05/03/2022, inédito)
Costumo amanhecer, o céu vislumbro;
O mar embaixo muge sossegado,
A orla estriada rege o som das nuvens;
O vento lança-me aos olhos (o rosto bebe)
O que sobra das ondas, claro dorso.
Eu que te procurei em luas, sol,
Mar e águas todas só agora te encontro,
No ardor dos pelos, fulgurantes olhos,
Animal sobre o oceano debruçado,
Na postura de alguém que sempre aguarda. |
Pintura equestre de Franz Marc |
Exaurido me apalpo. Sei que existes,
De ventre aberto ao mar, de espera rude.
Navegadores chegam, embriagados
De sonho, de cobiça e velhas perdas.
Sei que te ornam algas; vieste do Oriente.
Ou do Ocidente vens, em luz de pérola?
Que me enchem de desvairos cores novas.
A alvorada me beija? Nem sei se a tenho
Entre teus braços – trucidantes hastes,
Enlaçando mastros, extraviadas quilhas.
Foi boa a noite dentre pesadelos
Ruminados sobre teus passos, tua
Lenta navegação por entre torres
Em que te amarram cordas de silêncio.
Dorme a amada; o mar urde laborioso.
Estamos sós, eu e tu. E o mar, testante
(Leguleio de aromas e vivências)
Do que deixaram tardos marinheiros
Sobre a terra límpida, mas exausta,
Os bens que, de alma apenas, pó restaram.
O mar é o que te basta; é a tua culpa.
Por isso, nada esqueces, nada passa:
A memória a acender-te o labirinto,
A luz a reavivar o antigo rosto,
Espuma a te invadir adusto ventre.
Tua baía, escancarada porta
A quem te penetre água e terra adentro
– peixes, pássaros, luas navegantes –,
A boca lúbrica, emitindo toques
De tambores também lascivos, urra.
Fica em silêncio que já te cubro, égua
Fogosa, imersa em toldo florescente:
Te pego pelo casco, jade puro;
Te puxo pelas crinas rutilantes;
Te arranco das encostas em que pastas.
Vem, vem; se és de ouro, risco-te nas pedras.
Vem; se és de fogo, banho-te no mar.
Vem; se és de lua, lanço-te no céu.
Urras; ah, pela anca afinal peguei-te,
Égua translúcida da madrugada.
E após, na lassidão que disto sobra,
Batida pela brisa que ressoa
No côncavo de uma onda, desvaneces,
Além do cais onde dormitam barcos.
O mar te trouxe; estrela, o mar te leva.
(Florisvaldo Mattos. Mares anoitecidos, 2000. Poema sobre à Cidade da Bahia).
Carybé (1911-1997). Pescadores na Baía de Todos os Santos
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DADOS DO AUTOR
Natural de Uruçuca, no sul do estado da Bahia (Brasil), Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; professor aposentado da Universidade Federal da Bahia; exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe (Diário de Notícias e A Tarde, ambos de Salvador). Foi correspondente e dirigente da sucursal do Jornal do Brasil (RJ) na Bahia, durante 21 anos. Em 1964, cumpriu pós-graduação de Aperfeiçoamento em Jornalismo Impresso, na Escuela Superior de Periodismo, de Madrid, Espanha.
Por mais de uma década (1990-2003), exerceu a editoria do caderno semanal A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como o melhor do Brasil no quesito de Divulgação Cultural. Desde 1995, é titular da Cadeira nº 31, da Academia de Letras da Bahia. Entre 1987-89 ocupou a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).
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FM, Photolab, de Mauro Coelho |
Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma Antologia, 2012; Estuário dos dias e outros poemas, 2017, Antologia poética e inéditos, 2017 (todos de poesia). Estação de Prosa & Diversos, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 2018 (3ª edição, Salvador: ALBA Cultural) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, em 2004 (os últimos de ensaio). Participou de antologias de poesia nacionais e internacionais. Publicou em 2022 a coletânea intitulada CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro (Itabuna-BA: Editora Mondrongo), lançado na Bienal do Livro da Bahia, em 12 de novembro, e uma compilação de escritos sobre Literatura e Arte, sob o título de Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais, lançado em 25 de abril de 2023, no Museu de Arte da Bahia.
Rockwell Kent (1882-1981) The Trapper (O Caçador de Peles)