sábado, 13 de abril de 2024

FM, 92 ANOS, COM SAUDAÇÕES EM VERSOS

 AO PESO DE 92 TONELADAS, DE AMOR E VIDA!

 

Muito obrigado a todas e todos (desculpem o uso desse estranho conchavo verbal), que me saudaram, com parabéns e expressões de afeto, pelo meu trânsito vivencial, levando no ombro as minhas 92 toneladas de sonhos e aspirações vividos, com peso de amor à poesia, aos prazeres da vida e ao congresso de amizades, que sempre me acompanham.

"A vida passa e em passar consiste”, como disse um já saudoso poeta português, em verso de um soneto. Portanto, não custa nada anunciar que em breve nuvens que não se apagam irão iluminar a chegada de uma nova safra de símbolos, reunindo o que vingou, sob o título de Sonetos Reunidos, de 1953 a 2023.

E por que isso? Pelo prazer de prosseguir na vida, calmo e esperançoso, dentro do que sentencia esta quadra, em versos de sete sílabas (redondilha maior).

 

Sem palco e sem microfone,

No bar, à noite, com vinhos,

Sem carta e sem telefone,

De olhar doce, sem espinhos.

(FM, 08.04.2024)

Que me dê forças o que pressupõe a imagem dessa pintura de Henri Matisse, intitulada "A Felicidade de viver" (1905-1906);

FELICIDADES REDOBRADAS PARA TODAS E TODOS!

    Henri Matisse (1869-1954), Le Bonnheur de Vivre (A Alegria de Viver), 1905-1906

 

UAÇAÍ MAGALHÃES LOPES

 

NOBRE PROFESSOR

                    A Florisvaldo Mattos, meu Nobre Professor.

 

“A vida passa e em passar consiste”.

In Esplendor na Relva, Rui de Costa Belo,

citado por Florisvaldo Mattos

na passagem dos seus 92 anos.

 

Sim. Tudo que existe neste planeta

que é criação de Deus o criador,

eu ouso transcrever com a caneta

o que aprendi com o Nobre Professor!

 

A vida é muito mais que os animais

e os vegetais aqui em nossa terra,

a poesia sim! é muito mais:

resiste à morte, que a tudo encerra.

 

“A vida passa e em passar consiste...”

Florisvaldo nos deixa em poesia,

flores em verso, que ao tempo resiste.

 

Chamá-lo Deus seria uma heresia,

a poesia é criação mais rica,

a vida passa e a poesia fica!

 

Salvador, 08 de abril de 2024 às 23:42hs.

Uaçaí Lopes

Uaçaí Lopes: Meu Nobre Professor!

Venho a dias trabalhando nesse soneto para homenagear a passagem dos suas magníficas 92 primaveras. Somente terminado ontem, à noite, depois que li sua mensagem! Tentei enviar ontem mais não consegui, perdi o contato no WhatsApp, não sei o motivo. Por isso, somente lhe enviei hoje! Um grande abraço e desejo muita saúde e mais uns 90 os dois eu pego para mim para não deixar muito peso para o amigo. (09.04.2024)

 

Lourival Pereira Júnior Piligra

 

08.04.2024

 

Aniversário de um mestre, Florisvaldo Mattos, 92 anos, de poesia, humildade, simplicidade e talento.

 

Ao grande mestre e poeta

jornalista - sim senhor -

demonstro em verso o valor

e em rima pura e concreta

 

meu carinho ao professor.

Demonstro compondo a meta

sem falar como profeta

a nosso grande escritor:

 

celebre em gozo este dia

do romano calendário

respirando fantasia

oxigênio imaginário

 

brindando com poesia

seu feliz aniversário!


WALTINHO QUEIROZ


Florisvaldo, muitas flores 

nas matas da sua existência!

Florisonhos, Florisdores

floração da paciência 

florisnaves do delírio

florisvelas de alto mar

flores que um dia cuidou 

do colo de Vera enfeitar!                            


Parabéns Florí e bola pra frente ! 

08.04.2024


sábado, 6 de abril de 2024

HISTÓRIA DO SAMBA BRASILEIRO, DESDE 1916

 


 
   Donga, Pixinguinha e João da Baiana, três das origens do samba


PRIMEIRO SAMBA DA MPB (1916)

 

Pelo Telefone é considerado o primeiro samba a ser gravado no Brasil segundo a maioria dos autores, a partir dos registros existentes na Biblioteca Nacional, embora existam gravações de samba anteriores não tão bem sucedidas como "Samba - Em Casa da Bahiana"(1912) e "Urubu Malandro"(1914).

Criação coletiva de autoria controversa, a composição ganhou a assinatura de Ernesto dos Santos, mais conhecido como Donga, e do jornalista Mauro de Almeida. Foi registrada em 27 de novembro de 1916 como sendo de autoria apenas de Donga — que mais tarde incluiu Mauro como parceiro — e concebida em um famoso terreiro de candomblé daqueles tempos, a casa da Tia Ciata, frequentada por grandes músicos da época. Por ter sido um grande sucesso e devido ao fato de ter nascido em uma roda de samba, de improvisações e criações conjuntas, vários foram os músicos que reivindicaram a autoria da composição.

 

A canção foi composta em 1916, no quintal da casa da Tia Ciata, na Praça Onze. A melodia, originalmente, intitulava-se Roceiro e foi uma criação coletiva, com participação de João da BaianaPixinguinhaCaninhaHilário Jovino Ferreira e Sinhô, entre outros. Sobre a paternidade da música, Donga a registrou antes, justificando a ação com a máxima atribuída a Sinhô: "música é como passarinho, de quem pegar primeiro".

A letra original da canção, que era “O chefe da folia/ Pelo telefone / Mandou me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar”, foi alterada para a versão mais conhecida hoje em dia, "O Chefe da Polícia / Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca / Tem uma roleta/ Para se jogar". Segundo depoimento de Donga para o Museu da Imagem e do som (MIS), “O Chefe da Polícia… foi uma paródia feita pelos jornalistas de A Noite”. Repórteres do jornal tinham, em 1913, posto uma roleta no Largo da Carioca, para demonstrar a tolerância da polícia com o jogo. Em abril de 1913, o chefe de polícia do Rio de Janeiro havia declarado que o jogo permaneceria liberado “até que o governo resolvesse o contrário". Henrique Foréis Domingues, o Almirante, em matéria no jornal O Dia, em 13 de fevereiro de 1972, também confirma essa versão: “alguém lá na redação de “A Noite”, inspirando-se nos episódios em questão, criou a famosa paródia”.

Existem controvérsias quanto à autoria e quanto à data da composição. Segundo alguns, a canção teria sido composta em 1916, no quintal da casa da Tia Ciata, na Praça Onze. A melodia, originalmente, intitulava-se Roceiro e foi uma criação coletiva, com participação de João da BaianaPixinguinhaCaninhaHilário Jovino Ferreira e Sinhô, entre outros. O Jornal do Brasil, em 4 de fevereiro de 1917, publicou uma nota do Grêmio Fala Gente comunicando que “o verdadeiro tango Pelo Telefone”, dos autores João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário, seria cantado na Avenida Rio Branco, dedicado “ao bom e lembrado amigo Mauro”. O próprio Almirante acusou Donga de se ter apropriado de uma criação coletiva. Donga respondeu que as músicas eram diferentes. Mas concordou que não foi o autor da letra de Pelo Telefone, que é de Mauro de Almeida. Culpou a gravadora por ter omitido o nome do parceiro. “A omissão do nome de Mauro, na gravação da Casa Edison, não pode ser atribuída a mim”, disse.


PELO TELEFONE, NA VOZ DE ALMIRANTE


https://www.youtube.com/watch?v=EGMMT0ApIGo&ab_channel=Almirante-Topic


LETRA:


PELO TELEFONE


O chefe da polícia pelo telefone manda me avisarQue na Carioca tem uma roleta para se jogarO chefe da polícia pelo telefone manda me avisarQue na Carioca tem uma roleta para se jogar
Ai, ai, ai,Deixa as mágoas para trás ó rapazAi, ai, ai,Fica triste se és capaz, e verás.Ai, ai, ai,Deixa as mágoas para trás ó rapazAi, ai, ai,Fica triste se és capaz, e verás.
Tomara que tu apanhesPra nunca mais fazer issoRoubar amores dos outrosE depois fazer feitiço.Ai, a rolinha / Sinhô, SinhôSe embaraçou / Sinhô, SinhôCaiu no laço / Sinhô, SinhôDo nosso amor / Sinhô, Sinhô
Porque esse samba, /Sinhô, SinhôÉ de arrepiar, /Sinhô, SinhôPõe a perna bamba / Sinhô, Sinhô   
Almirante (Henrique Foréis, 1908-1980)

Mas faz gozar / Sinhô, Sinhô          O "Peru" me disseSe o "Morcego" visse
Não fazer tolice,Que eu então saísseDessa esquisiticeDe disse que não disse.
Mas "Peru" me disseSe o "Morcego" visseNão fazer tolice,Que eu então saísseDessa esquisiticeDe disse que não disse.Ai, ai, ai,Deixa as mágoas para trás ó rapazAi, ai, ai,Fica triste se é capaz, e verás.Ai, ai, ai,Deixa as mágoas para trás ó rapazAi, ai, ai,Fica triste se é capaz, e verás.
Queres ou não / Sinhô, Sinhô,Vir pro cordão / Sinhô, SinhôSer folião / Sinhô, SinhôDe coração / Sinhô, SinhôPorque este samba/ Sinhô, SinhôÉ de arrepiar / Sinhô, SinhôPõe a perna bamba / Sinhô, SinhôMas faz gozar / Sinhô, Sinhô


Pelo Telefone, samba (1916), autoria de Ernesto dos Santos, o Donga (1890-1974), e Mauro de Almeida (1882-1956). 


OUTROS SAMBAS NA ORDEM HISTÓRICA E CRIATIVA


HENRIQUE VOGELER 


LINDA FLOR, samba de Henrique Vogeler, Luiz Peixoto e Marques Porto. Criação: 1928. 1ª gravação: 1929. Na voz de quem primeiro a gravou. Aracy Cortes (nome artístico de Zilda de Carvalho Espíndola, 1904-1985)


https://www.youtube.com/watch?v=I9GkXyHjIMk&ab_channel=SomemBomTom


LINDA FLOR, em, gravação de Dalva de Oliveira. 


https://www.youtube.com/watch?v=F-vYoK7_NNk&ab_channel=AlvadeOliveira-Topic

LINDA FLOR, em gravação de Elizeth Cardoso.


https://www.youtube.com/watch?v=k74bf_qyFNA&ab_channel=Ant%C3%B4nioBocai%C3%BAva


LETRA:


LINDA FLOR (AI, IOIÔ)


Ai, Ioiô
Eu nasci pra sofrer
Fui oiá pra você meus óinho fechô
E quando os óio eu abri
Quis gritar, quis fugir
Mas você
Eu não sei por que você me chamou


Ai, Ioiô
Tenha pena de mim
Meu Sinhô do Bonfim pode inté se zangar
Se ele um dia souber
Que você é que é
O Ioiô de Iaiá


Chorei toda noite 

Pensei
Nos beijos de amor que eu lhe dei
Ioiô meu benzinho do meu coração
Me leva pra casa, me deixa mais não


MEIGA FLOR. De Henrique Vogeler e Freire Júnior. Gravação de Francisco Alves


https://www.youtube.com/watch?v=lksSG6rmde0&ab_channel=lucianohortencio


ISMAEL SILVA 

SE VOCÊ JURAR, 1930 - Gravação de Francisco Alves e Mário Reis


https://www.youtube.com/watch?v=-87u55euUUE&ab_channel=FranciscoAlves-Topic


ANTONICO. Gravação de Ismael Silva


https://www.youtube.com/watch?v=eUUFGYsdias&ab_channel=corazzaaaa


ADEUS. Gravação de Ismael Silva


https://www.youtube.com/watch?v=IdYOyWQ6u4o&ab_channel=rioemsolmaior


NEM É BOM FALAR. Gravação de Francisco Alves


https://www.youtube.com/watch?v=wVKuFeHnjZY&ab_channel=CarlosDidier


QUE SERÁ DE MIM. Gravação de Mário Reis


https://www.youtube.com/watch?v=z4GDckt-E2c&ab_channel=Negrasemente%2Cfinaflordamalandragem


JAIME VOGELER

ANDO CHEIO DE CONVERSA - Samba de Sátiro de Melo e N. B. Castro. Disco Odeon 11151-B. Ano de 1934.


https://www.youtube.com/watch?v=tvwLet4szWU&ab_channel=lucianohortencio


ARY BARROSO


Aquarela do Brasil. Gravação de Gal Costa.


https://www.youtube.com/watch?v=BMZQoNNrMz4&ab_channel=videoraridade


Faceira - gravação de Sylvio Caldas, 1931


https://www.youtube.com/watch?v=MFJOi8wdJCI&ab_channel=ChoroePoesia


No Tabuleiro da Baiana - Gravação de Carmen Miranda

https://www.youtube.com/watch?v=Lisg8Mpe_v8&ab_channel=CarmenMiranda-Topic


Caco Velho. Gravação de Orlando Silva.


https://www.youtube.com/watch?v=p01GYvODxq8&ab_channel=lucianohortencio


Na Baixa do Sapateiro - Gravação dos Anjos do Inferno


https://www.youtube.com/watch?v=DDR4fKpPUTw&ab_channel=lucianohortencio


Na Batucada da Vida. Gravação de Dircinha Batista, em 1950


https://www.youtube.com/watch?v=R0EeLWlX5O0&ab_channel=Linda%26Dircinha%3AAsIrm%C3%A3sBatista


Na Batucada da Vida. Gravação de Elis Regina.


https://www.youtube.com/watch?v=sn1GfEh6IPs&list=RDsn1GfEh6IPs&start_radio=1&ab_channel=clubbossanova



 Risque - Gravação de Sylvio Caldas


https://www.youtube.com/watch?v=uDnlqk5AuBY&ab_channel=AbelBeauregard


Foi Ela. Gravação de Francisco Alves


https://www.youtube.com/watch?v=McHs5ZLweqI&ab_channel=lucianohortencio


Camisa Amarela. Gravação de Aracy de Almeida.


https://www.youtube.com/watch?v=c92mFfJCxc8&ab_channel=AracydeAlmeida-Topic


Os Quindins de Iaiá. Gravação de Emilinha Borba e Paulo César Macedo.


https://www.youtube.com/watch?v=tLURqiiN8Fg&ab_channel=Ant%C3%B4nioBocai%C3%BAva


Trapo de Gente. Gravação de Linda Batista.


https://www.youtube.com/watch?v=cP5Wfuqcx9k&ab_channel=LindaBatista-Topic


Terra Seca. Gravação de Jamelão.


https://www.youtube.com/watch?v=BMZQoNNrMz4&ab_channel=videoraridade


Pra Machucar Meu Coração. Gravação de João Gilberto.


https://www.youtube.com/watch?v=3IN05cXaO0w&ab_channel=ruthorleans


No Tabuleiro da Baiana. Luiz Barbosa e Carmen Miranda.


Isto aqui o que é. Gravação dos Novos Baianos.


https://www.youtube.com/watch?v=cfcD8tn0ou0&ab_channel=MPB%3A%3AAsMelhores%21


Inquietação. Gravação de Elizeth Cardoso.


https://www.youtube.com/watch?v=GzPaCoTr_uo&ab_channel=ChoroePoesia


quarta-feira, 20 de março de 2024

ANIMAIS DA NATUREZA, NA POESIA E NA ARTE





Diego Velásquez, As Meninas e o Cão, 1656, Barroco espanhol

NATUREZA, SEMPRE, AINDA MAIS COM POESIA E ARTE!

(Florisvaldo Mattos).

Eu não sabia que se comemorava o Dia Internacional dos Animais. Que maravilha! Assim sendo, ante uma feliz postagem, resolvi me incorporar a essa bandeira em defesa e glorificação de tão grandiosos seres da natureza, publicando os três poemas, com que participei de coletânea organizada pela escritora Rosana Piccolo, cujo prefácio também assina, de quem recebi o honroso convite, intitulado "Gato Brigando é Tigre (Curitiba: Editora Lobo Azul, 2022), reunindo poesias sobre várias espécies de animais cultivadas pelo ser humano, desde a sua existência, material e simbólica.
Talvez empolgado com a excelsitude desse projeto editorial, resolvi, audaciosamente avançar, publicando, de moto próprio, poemas sobre animais de muitos outros criadores, que a história da poesia chancela.
Vão abaixo os publicados, de minha autoria, com o acréscimo do terceiro poema enviado, mas não integrado ao conjunto do livro, e, em seguida, as muitas criações do gênero, de ampla abrangência, incluindo poemas de baianos, publicados ou até inéditos.
Se há excesso de adequação temática, vai por conta de travessuras que a arte nos inflige, no correr dos dias e das noites.

Cabras, xilogravura de Calasans Neto


A CABRA

Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório.
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –

teu pelo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

(Florisvaldo Mattos, Reverdor. Salvador: Edições Macunaíma, 1965)


PEIXE

O peixe, ali fisgado como um’alma
que viesse de paraíso adormecido,
vem com listras também de cores pardas;
a anzol, rede ou arpão parece imune.
Percorro a face clara do mar. Subo,
desço com o barco lesto sobre as ondas,
e instalo a perdição que é minha e dele.
Súbito, contra a espuma finco o remo
e aguardo a solidão de sua perda,
para o fatal lampejo que a água lança:
é ele, puro, que ascende e fura o espelho,
a ele ignoto e também fatal desígnio.
Vejo o sangue escorrendo lentamente,
pela guelra, e o olhar de ouro que me fita.

(Florisvaldo Mattos, Mares anoitecidos. Rio de Janeiro: Imago Editor, p. 55, 2000).


CAVALOS ESPIRITUAIS

Luzem para a humanidade
os cavalos de Franz Marc,
azuis, amarelos, rubros,
seus cavalos sonhadores.
Seres límpidos, gestados
em luz de mente sensível,
animais no seu poder
de revelar a existência.
Há o sentimento da vida,
as emoções verdadeiras,
correndo por esses claros
horizontes que amanhecem.
Cavalo Azul, do expressionista Franz Marc


Formas altas, pensativas,
cavalos espirituais,
a cor, o frêmito e o instinto
perpetuam-se na paisagem,
mais belos, mais puros, eles,
como todos são realmente,
galopando vastos prados,
na vizinhança da essência.
Olhados da eternidade,
são prova mais que patente
de que para o homem que sonha
a natureza não morre.
Aos ímpios seres humanos
nada dizem, nada exprimem,
são só lições de beleza,
que explode como verdade.
Nas suas curvas e pelos,
eles trazem para nós,
dádiva de um deus oculto,
o ócio que ao bem sucede.
Voam. Movidas pelo vento,
as ágeis crinas, ao sol,
agitam signos dourados,
azuis que sejam com a chuva.
Superiores à tristeza
que invade e aprisiona a alma,
pedras e nuvens clareiam
essas torres flamejantes.
Em teclado de colinas,
ao ritmo dos cascos rútilos,
a plenitude da tarde
rege a música da terra.
Mais que a luz que se dissolve
nos contornos da aparência,
vibra, fulge e permanece
o que está por trás do humano.

(2006)

(Florisvaldo Mattos, Poesia Reunida e Inéditos. São Paulo: Escrituras Editora, p. 326, 2011)


NÃO AOS CAVALOS TRIUNFANTES

Aos meninos de My-Lai

Não me tragam esses cavalos.

Não, não me deem nenhum deles.

Nem o de Alexandre Magno

que comeu os mitos do Oriente.

Nem o cavalo de César

que rasgou o chão da Gália

que foi à Espanha e voltou

para acabar com Pompeu.

Nem o intrépido corcel de Aníbal

na derrota de Cartago.

Nem o fero potro de Átila

de patas excomungadas.

Não, nem mesmo Babieca,

o doido cavalo do Cid.

Nenhum daqueles valentes

fortes cavalos cruzados

cobertos de ferrarias:

grandes cavalos blindados

heróis da Idade Média

salvação da Cristandade.

Nem o branco de Napoleão

empinado sobre os Alpes

suando revolução.

E outros cascos triunfantes

outras crinas memoráveis

cavalos como bandeiras

sejam árabes ou romanos

espanhóis ou americanos

não me deem esses cavalos!

O césar Calígula e seu cavalo Incitatus 

Para mim de nada servem

as ferraduras de sangue

que chagaram geografias.

Esse peitoral de bronze

dizimador de cidades

arrasador de sementes.

O fogo de suas narinas

pulou séculos e mapas

transformou povos em cinza

e ainda queima os espaços.

Os relinchos são navalhas.

Não, já vos disse, não quero.

Para mim de nada servem,

são cavalos militares

ensinados para a guerra.

Desde criança que amo

cavalos pelas campinas

sentindo o cheiro do pelo

saltando pedras e cercas

(a disputa era com os ventos

ao espelho de águas claras).

Quero esses, e somente esses,

cavalos da natureza,

livres de arreios e pulsos –

ruços, alazães, castanhos,

negros, melados ou pampos.

(Florisvaldo Mattos, Fábula civil, 1975)


UM ORÁCULO BRASILEIRO


Rosana Piccolo


O mistério dos sonhos nos desafia há milênios. Longo é o período da humanidade no qual foram considerados mensagens de deuses e/ou demônios, em uma linguagem passível de ser decifrada por especialistas. O Antigo Testamento, para nos limitar à religião judaico-cristã, apresenta frequentes episódios envolvendo sonhos e seus intérpretes. Dentre estes, destaca-se José, no Egito, onde talvez, mais do que em todas as civilizações do mundo antigo, os sonhos tinham caráter premonitório. Da Antiguidade até bem pouco tempo, segundo estudiosos do assunto, as coisas se mantiveram mais ou menos parecidas. Vários séculos tiveram de transcorrer até se descobrir que os sonhos são produtos da mente do sonhador. Ainda assim, a descoberta não elimina, de forma total, a necessidade do intérprete, desta vez com vestes mais científicas, na figura do psicanalista.

À entrada do século XX, quanto Freud lançava na Europa A interpretação dos sonhos, as camadas mais humildes da sociedade brasileira nada deixavam a desejar, por assim dizer, em relação a teorias oníricas. A total inexistência de cunho científico dessas interpretações populares, oriundas, em última instância, de interesses pecuniários, não impediu a circulação de correlatos amplamente difundidos por aqui, sobretudo nos grandes centros urbanos, se não em forma de panfletos improvisados, ao certo transmitidos pelo boca a boca. Falamos do intrincado cabedal de significados dos sonhos de apostadores do jogo do bicho, surgido nesse período.

Para os que não conhecem a história, o que a partir de 1941 passa a ser considerado contravenção penal teve sua origem no fim do século anterior, por uma iniciativa do Barão de Drummond: a construção de um zoológico no Rio de Janeiro, com o atrativo adicional de fornecer, a cada entrada vendida, um bilhete com a figura impressa de um bicho dando direito a concorrer ao sorteio do dia, sempre às cinco da tarde. O sucesso dessas extrações foi surpreendente. Tanto que não tardou a estender-se além das fronteiras do zoológico, de forma crescente e acelerada, até pontos de venda ramificados em bairros periféricos. E, com eles, a prole de intérpretes dos sonhos de apostadores, não necessariamente com bichos, mas, invariavelmente profetizando o resultado do sorteio – prática que sobrevive, ainda, às loterias atuais legalizadas.

A interpretação desses sonhos não se limitava ao óbvio – o que dispensaria o trabalho do intérprete. Inclusive a máxima desse público era a de que “não se deve jogar no bicho que se sonhou”. Além disso, como já dissemos, nem sempre o tema do sonho do apostador era um dos bichos constantes entre os 25 integrantes do sorteio, o que acabou dando origem a associações curiosas: sonhar com canivete ou aliança é avestruz; algodão ou feijão é águia; sol ou camaleão é cabra; automóvel ou fuzil é leão; futebol é touro; etc. Dentre os itens desses “glossários”, cujas versões variavam de indivíduo para indivíduo, cidade para cidade ou região para região, um é o título desta coletânea: gato brigando é tigre.

A pergunta é inevitável: por que motivo, dentre essas inúmeras interpretações popularmente consagradas para 25 animais diferentes, a escolha recair justamente sobre a que se refere ao menor dos felinos? Um possível esclarecimento, para o que antes não passava de mera intuição, encontrei ao ler um dos posts da revista Filomática, de 31 de março de 2010, cuja argumentação reproduzo a seguir.

Como o autor sugere, há uma espécie de parentesco entre gatos e escritores. Não rigorosamente provada, evidentemente, contudo não desprovida de lógica.

Sabemos o quanto o gato é um ser silencioso. Sabemos também o quanto seu caminhar, inaudível, pode ser considerado solitário, embora um animal sociável. Ora, que tipo de escrita pode ser produzida senão no silêncio do pensamento de seu autor? E como partilhar o ato de sentar-se diante de um teclado para aí materializar impressões tão próprias e indivisíveis? Outras semelhanças somam-se a essa, quando pensamos especificamente nos poetas.

O olhar do gato é único. Do medo à atração, da estranheza à ternura, a variedade de reações que desperta nunca dá lugar à indiferença. Como um gato, comporta-se a poesia. Pois em qual verso de um poeta, por mais evidente que pretenda ser, não subjaz o mesmo olhar misterioso, tão profundo e indecifrável, como o de um deus que nos atravessa a alma?

Sabemos ainda o quanto, do ponto de vista de uma lógica estritamente cartesiana, gatos e poetas despertam desconfiança. Nenhuma incoerência, tratando-se de seres nada claros e distintos, confusos que são, sob essa ótica, gatos e poetas. Se assim é, não seria ao menos tentador associar a mesma imprevisibilidade, a mesma forma ambígua de ser, contraditória e até desconcertante de um bom poema ao comportamento desse animal? Como não reconhecer, nos dois casos, a mesma liberdade em relação a qualquer certeza, como convém aos espíritos livres?

Outras aproximações são possíveis aos adeptos dessa crença. Não obstante, atenhamo-nos às sugeridas acima. Porque Gato brigando é tigre reúne poemas dedicados a todo o reino animal. Todas as classificações estabelecidas pela biologia, incluindo categorias míticas ou fantásticas, inspiraram o livro. Verdade que tantos pontos de vista e formas de abordagem garantem, por si só, o prazer da leitura – disso não tenho dúvida. Mas a pluralidade, neste caso, equivale ao esmero de cada um deles. Portanto, não ficaria surpresa se viesse a encontrar, por uma página ou outra, mesmo velado, parcial ou sutilmente impresso, algum vestígio felino. Se for de um tigre, tanto melhor.


No Dia dos Animais, pareceu-me justo fazer uma propaganda deste livro. Só autores feras (Rosana Piccolo):

Armando Freitas Filho
Álvaro Alves de Faria
Carlos Felipe Moisés
Sérgio de Castro Pinto
Rubens Jardim
Iara Maria Carvalho
Florisvaldo Mattos
Marcelo Pierotti
Rubens Zárate
Daniel Wachowicz
Luci Collin
Vera Lúcia de Oliveira
Ronald Polito
Libério Neves
Ruy Proença
Susanna Busato
Adriane Garcia
Jayro José Xavier
Yuri Amaury
Asta Vonzodas
Francisca Júlia
Andréia Carvalho Gavita
Donizete Galvão
Federico García Lorca
Gabriel Morais Medeiros
Leandro Rodrigues
Charles Baudelaire
Nuno Garcia Lopes
Guillaume Apollinaire
Silvana Guimarães
Alice Queiroz
Raul Drewnick
Antônio Mariano
Olavo Bilac
Celso de Alencar
Líria Porto
Ziul Serip
Linaldo Guedes
Gregory Corso
William Blake
Eduardo Lizalde
Marcelo Diniz
Luiz Roberto Guedes
Carlos Emílio Corrêa Lima
Tradutores:
Álvaro Faleiros/ Ângelo
Monteiro/ Ciro Moroni Barroso/ Delfim de Brito Monteiro Guimarães/ Plínio Junqueira Smith/ Rubens Zárate
Capa e ilustrações, da autoria de Juliano Machado

_________

Rosana Piccolo é poeta e publicitária paulistana, formada em Filosofia, pela USP, e em jornalismo, pela Fundação Cásper Líbero. Possui livro publicados por várias editoras e atuou na organização de antologias literárias.


BOI PARA GUILHERMINO

                                      "O boi de março e sua baba"
                                       Guilhermino César

Carlos Felipe Moisés

O boi sabe da baba que escorre, sabe

da vida inútil que erra e em si não cabe.

O boi sabe pisar a terra como quem flutua
entre o remorso alheio e a campa nua.


O boi sabe do peso do seu casco errante
e do lago perdido num olhar distante.

O boi sabe, amoroso, raspar o chão
e ruminar na mesma palha sonho e coração.

O boi sabe esperar paciente o que não vem
e mesmo que viesse já viria sem.

O boi sabe, afinal, que a baba escorre
e fica, e em volta o dia (como tudo) morre.

Mais não sabe o boi e nem saber precisa.
Já lhe basta a afagar o dorso a mansa brisa.

In: MOISÉS, Carlos Felipe. Subsolo. São Paulo: Massao Ohno, 1989

 RATAZANA

Carlos Felipe Moisés

               É ódio ou brisa

o que lhe escorre

entre a baba

e as patas sutis

aquém e além

do focinho

                  enviesado?

Barata, perce-

Vejo, aranha, noz

moscada, pólen:

os olhos miúdos

destilam

o puro gozo de roer

a própria alma

                   enquanto

o fino rabo se alteia

e foge

                    e aponta

para o teto esburacado.


LOBO

Carlos Felipe Moisés

Calado

abraça a neblina

e cerra os olhos

como quem desmaia.

Púrpura, mágoa

sem remédio,

as patas enredadas

em silêncio e lama:

tudo em volta é solidão

        doçura.

E ninguém sabe

de onde vem

nem como

o uivo alucinado

que lhe sai da boca

e rasga a noite

como um coração

          que arde.

O GRITO

Donizete Galvão (1955-2014)

O porco guincha

e sob a pata dianteira

sai a golfada de sangue

que enche a bacia.


Horas depois,

pronto o chouriço,

comemos o sangue preto,

as tripas, o grito.

DEFORMAÇÃO

Donizete Galvão

eh pomba suja

     a urubuzinha de metrópole

ratazana

ávida por dejetos

       bebedora de água preta

aí está você:

       uma chapa

       uma pasta

de pena e sangue

milhares de vezes

vai-se repetir sua morte

       sob os pneus

eh pomba lerda

viu o que a cidade lhe fez?

Bem feito para você.

Viu o que a cidade nos fez?


A SERPENTE

    Caligrama de Apollinaire


Guillaume Apollinaire (1880-1918)

                                   Tradução de Álvaro Faleiros


 Sei que te obstinam as beldades

e que nelas com acuidade

exerceu tua crueldade!

Cleópatra, Eurídice, Eva,

Sei de outras três em tua leva.


PLUTÃO

 

Olavo Bilac (11865-1918)


Negro, com os olhos em brasa,

Bom, fiel e brincalhão,

Era a alegria da casa

O corajoso Plutão.

 

Fortíssimo, ágil no salto,

Era o terror dos caminhos,

E duas vezes mais alto

Do que o seu dono Carlinhos.


Jamais à casa chegara

Nem a sombra de um ladrão;

Pois fazia medo a cara

Do destemido Plutão.

Dormia durante o dia,

Mas quando a noite chegava,

Junto à porta se estendia,

Montando guarda ficava.


Porém Carlinhos, rolando

Com ele às tontas no chão,

Nunca saía chorando,

Mordido pelo Plutão...


Plutão velava-lhe o sono,

Seguia-o quando acordado:

O seu pequenino dono

Era todo o seu cuidado.


Um dia caiu doente

Carlinhos... junto ao colchão

Vivia constantemente

Triste e abatido, o Plutão.


Vieram muitos doutores,

Em vão. Toda a casa aflita,

Era uma casa maldita,

Era uma casa de dores.


Morreu Carlinhos... A um canto,

Gania e ladrava o cão;

E tinha os olhos em pranto,

Como um homem, o Plutão.


Depois, seguiu o menino,

Seguiu-o calado e sério;

Quis ter o mesmo destino;

Não saiu do cemitério.


Foram um dia à procura

Dele. E, esticado no chão,

Junto de uma sepultura,

Acharam morto o Plutão.

                           

Olavo Bilac,. Poesias Infantis. In: Bilac, Olavo. Obra reunida, (org. e introdução de Alexei Bueno). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 310-311.


REVOADAS


Rosana Piccolo


Não se sabe de onde vêm, frágeis criaturas da fuligem

de sobreaviso nos postes. Serão manadas ainda, harpias

importunas, aos surtos, sem carteira assinada.


Um pombo, dois pombos, treze milhões de arrulhos

rasantes, conurbanos, vagas de papel picado sem leitura.


Adensarão lobbies e ágoras.


Adensarão cadeias e pavilhões de sangue, donde vêm?


A noite, que tudo acoberta, recolhe a mais alva

esquadrilha. E embute outro poste, outro pombo, bola

cilenta no varal sem luz.


VACA


Federico García Lorca


 A Luis Lacasa

                                   Tradução de Rubens Zárate


Foi tombada a vaca ferida;

árvores e córregos trepavam por seus cornos.

Seu focinho sangrava pelo céu.


Seu focinho de abelha

sob o lento bigode da baba.

Um alarido branco pôs em pé a manhã.

Lorca, por Amparo Climent


As vacas mortas e as vivas,

rubor de luz ou mel de estábulo,

baliam com os olhos entornados.


Que saibam as raízes

e aquele menino que afia sua navalha

que já podem comer a vaca.


Acima empalidecem

luzes e jugulares.

Quatro cascos tremem no ar.


Que saiba a lua

e essa noite de pedras amarelas:

que já se foi a vaca de cinzas.


  Que já se foi balindo

pela queda dos céus endurecidos

onde os bêbados se alimentam de morte.


O ALBATROZ


Charles Baudelaire


Tradução de Delfim Guimarães


Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem

Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,

Que segue pelo azul a embarcação em viagem,

Num voo triunfal, numa carreira audaz.


Mas quando o albatroz se vê preso, estendido

Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!

Que pena que ele faz, humilde e constrangido,

As asas imperiais caídas para o lado!


Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!

Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!...

Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,

Mutila um outro a pata ao voador inerme.


O Poeta é semelhante a essa águia marinha

Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;

Exilado na terra, entre a plebe escarninha,

Não o deixam andar as asas colossais!

ETU, O ANTÍLOPE

(poesia anônima africana)

                                 Tradução do espanhol: Rosana Piccolo


Belo antílope de colo esbelto.

Tuas ancas valem vinte escravos.

Tuas patas, mais do que trinta empregados.

Mais elegante é teu colo do que uma tábua sagrada.


Igual a um nobre caminhas, agitando

o mato como sinos.

Perfeitas

são as insígnias

de tua face,

e audazes,

como as do rei de Obomossô.


Teu corpo mergulha na alvura com a qual Deus te honrou

Alegra-se o caçador ao avistar o senhor do branco.


Ao te matar não me contento, até não achar

no monte o teu corpo.

A mulher, grávida, quer tua pele.

Com ela, ao cobrir-se, terá uma criança bela.*


*Crença comum entre as mulheres iorubás.


Imagem de animal, pelo visionário William Blake (1757-1827)


O TIGRE


William Blake

                              Tradução de Ângelo Monteiro


Tigre, tigre que flamejas

Nas florestas da noite.

Que mão que olho imortal

Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?


Em que longínquo abismo, em que remotos céus

Ardeu o fogo de teus olhos?

Sobre que asas se atreveu a ascender?

Que mão teve a ousadia de capturá-lo?

Que espada, que astúcia foi capaz de urdir

As fibras do teu coração?


E quando teu coração começou a bater,

Que mão, que espantosos pés

Puderam arrancar-te da profunda caverna,

Para trazer-te aqui?

Que martelo te forjou? Que cadeia?

Que bigorna te bateu? Que poderosa mordaça

Pôde conter teus pavorosos terrores?

Quando os astros lançaram os seus dardos,

E regaram de lágrimas os céus,

Sorriu Ele ao ver sua criação?

Quem deu vida ao cordeiro também te criou?


Tigre, tigre, que flamejas

Nas florestas da noite.

Que mão, que olho imortal

Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?


MAIS POEMAS SOBRE ANIMAIS

VIRGÍLIO


Velho feliz! Continuarão teus campos a ser teus!

Pastores, no traço de Marcelo Lima

E bastam para ti, embora cubram pedras nuas

e um paul de limosos juncos todos estes pastos!

Não buscarão novas pastagens as ovelhas prenhes,

nem sofrerão o mau contágio de um rebanho próximo.

Velho feliz! Aqui, em meio a rios conhecidos

e entre sagradas fontes, gozarás sombra e frescor!

Ali a sebe, na raia do vizinho campo

pousam abelhas de Hibla sobre as flores do salgueiro,

ao sono te convidará com um leve sussurrar.

Junto a alta rocha cantará o desfolhador às brisas,

mas sem que ao mesmo tempo as roucas pombas, teu cuidado,

e a rola cessem de gemer no topo dos outeiros.


Públio Virgílio Maro (70 aC.-19 aC), poeta romano. Bucólicas. Égloga I, versos 46 a 58. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, 1982.


SEXTO PROPÉRCIO


ELEGIA, III, 2

Galateia, de Salvador Dalí

 Voltemos, enquanto isso, ao cerne do nosso canto:

  alegre-se a garota ouvindo o som costumeiro.

Dizem que Orfeu, com a lira trácia, deteve

as feras e reteve impetuosos rios.

Contam que as pedras do Citéron, atraídas a Tebas pela arte,

espontaneamente se juntaram a pedaços de muro.

E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,

aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados:

admirar-nos-emos se, propícios Baco e Apolo,

bandos de garotas cultuarem palavras minhas?

Sexto Aulo Propércio (43 a.C-17), poeta romano. Elegia III-2. (Tradução: Maria da Glória Novak).


SONETO ROMANO COM GALATEIA


                              A Valdomiro Santana

 

                                   Quin etiam, Polypheme, fera Galatea sub Aetna

                                   Ad tua rorantis carmina flexit equos.

                                                           Sexto Propércio (Elegia III, 2)*


Florisvaldo Mattos

Não sou Orfeu, não sei deter os rios,

Nem toco flauta no portão do Inferno,

Para tirar do Amor grilhões sombrios

E postá-lo na margem em que aderno.


Não sou Camões; Calíope não me ensina

Os caminhos do mar. Vou para o bosque.

Sei que irão perguntar-me adiante quousque

Tandem há de durar a minha sina.

Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,

Guarde-os perto do campo de azaleia.

Se mais seguros, lá, mais bem guardados.


Oh, Propércio, avise aí a Polifemo

E me deixe no Etna com Galateia

Montada em seus cavalos orvalhados.


(Salvador/BA, manhã de 14/10/2018 (inédito).


*”E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,

Aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados”.

(Sexto Propércio, Elegias, trad. Maria da Glória Novak, 1992).

CHARLES BAUDELAIRE


O GATO - I

 


CHARLES BAUDELAIRE


O GATO - II

De seu pelo louro e tostado

Um perfume tão doce flui
Que uma noite, ao mima-lo, fui
Por seu aroma embalsamado.

É a alma familiar da morada;
Ele julga, inspira, demarca
Tudo o que seu império abarca;
Será um deus, será uma fada?

Se neste gato que me é caro,
Como por ímãs atraídos,
Os olhos ponho comovidos
E ali comigo me deparo,

Vejo aturdido a luz que lhe arde
Nas pálidas pupilas ralas,
Claros faróis, vivas opalas,
Que me contemplam sem alarde.

O CORVO


Edgar Allan Poe

                               Tradução de Fernando Pessoa


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,

E já quase adormecia, ouvi o que parecia

O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.

"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais."


Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.

Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada

P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!


Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo

Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!

Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,

"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;

Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,

"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;

Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,

Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,

Que mal ouvi..."

E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,

Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.

Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,

E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,

Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.

"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.

Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."

Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,

Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.

Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,

Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,

Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura

Com o solene decoro de seus ares rituais.

"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,

Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!

Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."


Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,

Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.

Mas deve ser concedido que ninguém terá havido

Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,

Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,

Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.

Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento

Perdido, murmurei lento,

"Amigo, sonhos - mortais

Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".

Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,

"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,

Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono

Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,

E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,

Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;

E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira

Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,

Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo

À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,

Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando

No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,

Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso

Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.

"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te

O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,

O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demónio ou ave preta!

Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,

A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,

A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais

Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demónio ou ave preta!

Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.

Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida

Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,


Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse.

"Parte! Torna à noite e à tempestade!

Torna às trevas infernais!

Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!

Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!

Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".

                                      

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda

No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha cor de um demónio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!


                Imagens: O Corvo, de Poe, por Édouard Manet


HISTÓRIA D'UM CÃO

Luís Guimarães Júnior (1845-1898)

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:

Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos d'um camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,

Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava...


«Adeus!» - me disse - e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

«Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicarás os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»

Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.


Nas longas noites de luar brilhante,

Febril, convulso, trêmulo, agitando

A sua cauda - caminhava errante

À luz da lua - tristemente uivando


Toussenel, Figuier e a lista imensa

Dos modernos zoológicos doutores

Dizem que o cão é um animal que pensa:

Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,

Cinco meses depois, do meu amigo

Um envelope fartamente cheio:

Era uma carta. Carta! era um artigo.


Contendo a narração miúda e exata

Da travessia. Dava-me importantes

Notícias do Brasil e de La Plata,

Falava em rios, árvores gigantes:


Gabava o "steamer" que o levou; dizia


Que ia tentar inúmeras empresas:

Contava-me também que a bordo havia

Mulheres joviais - todas francesas.

Assombrava-me muito da ligeira

Moralidade que encontrou a bordo:

Citava o caso d’uma passageira...

Mil coisas mais de que me não recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo

Em nota breve do melhor cursivo

Recomendava o pobre do Veludo

Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento

Me contemplava, e - creia que é verdade,

Vi, comovido, vi nesse momento

Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,

Estendeu-se a meus pés silencioso

Movendo a cauda, - e adormeceu contente

Farto d’um puro e satisfeito gozo.

                                                         

Passou-se o tempo. Finalmente um dia


Vi-me livre daquele companheiro;

Para nada Veludo me servia,

Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.

E respirei! «Graças a Deus! Já posso»

Dizia eu «viver neste bom mundo

Sem ter que dar diariamente um osso

A um bicho vil, a um feio cão imundo».

Gosto dos animais, porém prefiro

A essa raça baixa e aduladora

Um alazão inglês, de sela ou tiro,

Ou uma gata branca cismadora.


Mal respirei, porém! Quando dormia

E a negra noite amortalhava tudo,

Senti que à minha porta alguém batia:

Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,

Farejou toda a casa satisfeito;

E - de cansado - foi rolar dormindo

Como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável

Suportar esse hóspede inoportuno

Que me seguia como o miserável

Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso

Dizê-lo em alta voz e confessá-lo:

Para livrar-me desse cão leproso

Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;

Ao longe o mar na solidão gemendo

Arrebentava em uivos e lamentos...

De instante em instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguiu-me. No entanto

A fremente borrasca me arrancava

Dos frios ombros o revolto manto

E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,

Contra as ondas coléricas vogamos;

Dava-me força o torvo pensamento:

Peguei num remo - e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso

Como o cordeiro no final momento.

Embora! Era fatal! Era forçoso

Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços

E arremessei-o às ondas de repente...

Ele moveu gemendo os membros lassos

Lutando contra a morte. Era pungente.

Voltei à terra - entrei em casa. O vento

Zunia sempre na amplidão, profundo.

E pareceu-me ouvir o atroz lamento

De Veludo nas ondas, moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto

Notei - oh grande dor! - haver perdido

Uma relíquia que eu prezava tanto!

Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente

E o conservava no maior recato,

Pois minha mãe me dera essa corrente

E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,

No eterno abismo que devora tudo;

E foi o cão, foi esse cão imundo

A causa do meu mal! Ah, se Veludo

Duas vidas tivera - duas vidas

Eu arrancara àquela besta morta

E àquelas vis entranhas corrompidas.

Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, - abri... Era Veludo! Arfava:

Estendeu-se a meus pés, - e docemente

Deixou cair da boca que espumava

A medalha suspensa da corrente.

Fora crível, oh Deus? - Ajoelhado

Junto do cão - estupefato, absorto,

Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;

Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.


O MORCEGO

Augusto dos Anjos (1884-1914)

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!


A UM CARNEIRO MORTO


Augusto dos Anjos (1884-1914)


Misericordiosíssimo carneiro

Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!


Maldito seja o mercador vadio

Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!

Augusto dos Anjos. Eu e Outras Poesias = Edição Especial

Revista e Ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.


A PANTERA 


Rainer Maria Rilke (1875-1926)

                                        Tradução de José Paulo Paes

(No Jardin des Plantes, Paris)

Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.


O seu passo elástico e macio, dentro

do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.

Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. – Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha –
e se apaga quando chega ao coração.

Pablo Picasso (1881-1973). Touro Morrendo, 1934

O TOURO DA MORTE


Rafael Alberti (1902-1999)

                                  Tradução de Manuel Bandeira

Negro touro saudoso de feridas,
Chifrando-lhe à água azul suas paisagens
E revisando cartas e equipagens
Aos trens que partem rumo das corridas:

Que sonhas em teus cornos, que escondidas
Ânsias lhes arrebolam as viagens,
Que sistema de regos e drenagens
No mar ensaiam tuas investidas?

Nostálgico de um homem com espada,
De sangue femoral, gangrena feia,
Já ninguém há de deter-te o passo forte.

Corre, touro, ao oceano, investe, nada,
E a um toureiro de espuma e sal e areia,
Já que intentas ferir, fere e dá morte.


Fonte: Bandeira, Manuel. 2007Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado – como parte de uma elegia, “Verte y no verte”, dedicada a Ignacio Sánchez Mejías – em 1935.

Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 1899-Genebra, 1986)

O OUTRO TIGRE


                 And the craft that created a semblance

MORRIS: Sigurd the Volsung, 1876.


Jorge Luis Borges (1899-1986)

                                   Tradução de Josely Viana Baptista


Penso em um tigre. A penumbra exalta

A vasta Biblioteca laboriosa

E parece afastar suas estantes;

Forte, inocente, ensanguentado e novo,

Ele irá por sua selva e sua manhã

E deixará seu rastro na lodosa

Margem de um rio cujo nome ignora

(Em seu mundo não há nomes nem passado,

E não há futuro, só um instante certo.)



E vencerá as bárbaras distâncias,

Farejará no enleado labirinto

Dos olores o olor da alvorada

E o olor deleitável do veado;

Entre as riscas do bambu decifro

Suas riscas e pressinto a ossatura

Sob essa pele esplêndida que vibra.

Inutilmente interpõem-se os convexos

Mares e os desertos do planeta;

Desta morada de um remoto porto

Da América do Sul, te sigo e sonho,

Oh, tigre das ribeiras do rio Ganges.

Corre a tarde em minha alma e pondero

Que o tigre vocativo de meu verso

É um tigre de símbolos e sombras,

Uma série de tropos literários

E de memórias da enciclopédia,

Não o tigre fatal, joia nefasta

Que, sob o sol ou a diversa lua,

Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala

Sua rotina de amor, de ócio e de morte.

A esse tigre dos símbolos opus

O verdadeiro, o de sangue quente,

O que dizima uma tribo de búfalos

E hoje, 3 de agosto de 59,

Estende sobre o prado uma pausada

Sombra, mas só o fato de nomeá-lo

E de conjeturar sua circunstância

Torna-o ficção da arte e não criatura

Animada das que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.

Como os outros, este será uma forma

De meu sonho, um sistema de palavras

Humanas, não o tigre vertebrado

Que, para além dessas mitologias,

Pisa a terra. Sei disso, mas algo

Me impõe esta aventura indefinida,

Insensata e antiga, e persevero

Em procurar pelo tempo da tarde

O outro tigre, o que não está no verso.


A PANTERA


Jorge Luis Borges

                        Tradução de Josely Viana Baptista


Atrás das fortes grades a pantera

Repetirá o enfadonho itinerário,

Que é (mas não o sabe) seu fadário

De negra joia, aziaga e prisioneira.

Vão e vêm aos milhares, em desfiles

Infindáveis, mas é só uma e eterna

A pantera fatal que em sua caverna

Traça a reta que um eterno Aquiles

Traça no sonho que sonhou o grego.

Não sabe que há prados e montanhas

De servos cujas trêmulas entranhas

Deleitariam seu apetite cego.

Em vão é vário o orbe. A jornada

Que cumpre cada qual já foi fixada.

A UM GATO

 Jorge Luis Borges

              Tradução de Josely Vianna Baptista

Não são mais silenciosos os espelhos

Nem mais furtiva a aurora aventureira;


Tu és, sob a lua, essa pantera,

Que divisam ao longe nossos olhos.

Por obra indecifrável de um decreto

Divino, buscamos-te inutilmente;

Mais remoto que o Ganges e o poente,

Tua é a solidão, teu o segredo.

Teu dorso condescende à morosa

Carícia de minha. Sem um ruído,

De eternidade que ora é olvido,

Aceitaste o amor dessa mão receosa.

Em outro tempo estás. Tu és o dono

De um espaço cerrado como um sonho.

                                                                                                                                               Ilustração: Andy Warhol, Gato, 1985      


AO COIOTE

Jorge Luis Borges

Tradução de Josely Vianna Baptista


Século a século a areia infindável

Dos diversos desertos tem sofrido

Teus passos numerosos e o ganido

De chacal cinza ou hiena insaciável.

Por séculos? Eu minto. Essa furtiva

Substância, o tempo, não te alcança, lobo;

Teu é o puro ser, teu é o arroubo,

Nossa, a torpe vida sucessiva.

Foste um latido quase imaginário

Nos confins do Arizona, nessa areia

Onde tudo é confim, e se incendeia

Teu perdido latido solitário.

Símbolo de uma noite que eu possuía,

Seja teu vago espelho esta elegia.


OS CISNES


Júlio Salusse (1872/1948)

A vida, manso lago azul, algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós, constantemente,
um lago azul, sem ondas, sem espumas.

E nele, quando, desfazendo brumas
matinais, rompe um sol vermelho e quente,
nós dois vogamos indolentemente
como dois cisnes de alvacentos plumas.

Um dia, um cisne morrerá por certo.
Quando chegar esse momento incerto
no lago, onde talvez a água se tisne,

- que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca ao lado de outro cisne.

"Meu pai foi rei!"- "Foi!" (MB). Os Sapos, de Gustave Moreau

OS SAPOS


Manuel Bandeira (1886-1968)

Enfunando os papos,

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,

Berra o sapo-boi:

- "Meu pai foi à guerra!"

- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".


O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: - "Meu cancioneiro

É bem martelado.

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos.

 

Meu verso é bom

Frumento sem joio.

Faço rimas com

Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A fôrmas a forma.

Clame a saparia

Em críticas céticas:

Não há mais poesia,

Mas há artes poéticas..."


Urra o sapo-boi:

- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"

- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".


Brada em um assomo

O sapo-tanoeiro:

- A grande arte é como

Lavor de joalheiro.


Ou bem de estatuário.

Tudo quanto é belo,

Tudo quanto é vário,

Canta no martelo".


Outros, sapos-pipas

Um mal em si cabe),

Falam pelas tripas,

- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,

Lá onde mais densa

A noite infinita

Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,

Sem glória, sem fé,

No perau profundo

E solitário, é

Que soluças tu,

Transido de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio...


(Manuel Bandeira, Carnaval; Rio, 1919).


SG: "a cor vermelha chega a ser sonora / neste pavão pomposo".

PAVÃO VERMELHO

Sosígenes Costa (1901-1968)

Ora, a alegria, este pavão vermelho,

está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
(1937-1959)

SONETO AO ANJO 


Sosígenes Costa (1901-1968)


Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.

Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.

Só tu agora colhes azaleia
e os cintilantes cachos da azureia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.

Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.

(1930)

GARÇAS


Sosígenes Costa

Como um bando de preces japonesas

Que se desatam sob o céu de Nikko,

Garças em flor, de maravilhas presas,

Fogem pr´a as brotas do capuz de um pico.

 Agora tudo é lindo! Que belezas

As régias garças no bailado rico…

Plumas enconcham – pérolas retesas

Que tanto haurir… Daqui donde me fico.

E tão bailantes! Sobre o amor do musgo,

Com quem por causa delas sempre rusgo,

Sinto desejos de bailar assim…

Mas sou tão verme! É que do baile ao friso,

Pr´a se imitar as garças é preciso

Ter graça azul em um corpo de jasmim!


                        Belmonte, 1920

 O CISNE


Sosígenes Costa

Na indolência de um deus, lá vem à gruta, ao lago

O cisne. O azul de golpe empalidece! Tudo

De pérolas quer ser e tudo fica mudo

Ante tanto brancor, brancor que aos golpes trago.

Agita a pluma, dobra o colo… é de veludo!

Põe frisos n´água e segue a machucar (que estrago!)

Um nenúfar… Entanto, a linfa o espelho mago,

Sem se importar da flor que se quebrou. Estudo

Agora o cisne e quanto é o branco vejo esteta.

No cisne o branco é tudo. O cisne mais parece

O amor da estrela, o amor do alvor, o alvor da prece!

Nisso… Ele canta… E após deixar almas de poeta

Em cada som que tange, o cisne morre… Parte,

- O cisne, taça branca em que bebe a arte.


                        Belmonte, 1920


SONETO DO CAVALO

Cyro de Mattos

Músculo, suor, galope, cadência;

vento, porteira, campina, relincho.

No passo picado rude elegância,

maneira de cascos: trote, compasso.

Incansável crina em qualquer distância;

se selvagem, vence quem vem com o laço.

Nervoso fere com uma espada ígnea,

coito na seda, tremura, entrelaço.

 

Na chuva grossa, forte estiagem,

que de melhor pra montar no cavalo?

A amizade? Na manhã a aragem?


Na sela agora surgem do que falo

coisas de ontem como se hoje fossem...

ele, relva quadrúpede, o cavalo.


BURRO

Cyro de Mattos

O burro carrega fardos e espumas.

O burro carrega sonhos e tropeços.

O burro carrega sombras da estrada.

O burro carrega o verde das distâncias.


O burro carrega a hora da agonia.

O burro carrega o ventre de tudo.

O burro carrega a imemorial seiva.

O burro carrega a trama na cangalha.

O burro carrega mapa nos cascos. O burro carrega farol na encruzilhada.

O burro carrega passos inconscientes.

O burro carrega a solidão derrotada.

Imagem; foto de burros em serviço, como animais de carga

BLOCO DOS BICHOS

 

Cyro de Mattos

 

Neste brinquedo que parece sonho

o estandarte é levado pelo pombo,

a sanfona, tocada pelo porco,

e o pandeiro, pelo galo que é rouco.

 

Com o desfile formado bate o bombo,

o burro bem na frente de Rei Momo,

o bode baforando anéis de fumo,

o cachorro no gato dando tombo.

 

Sol canta, a lua dança, o sapo diz

que até que enfim o macaco é feliz,

de mãos dadas com dona onça vai e vem.


E com o rato, em mil pulos de alegria,

o pavão nessa rica fantasia,

o povo da cidade vai também.

SONETO DO REINO ANIMAL


Cyro de Mattos


Aranha, abelha, ariranha,

andorinha, anum, azulão,

gato, bode, borboleta,

galinha, cavalo, cão.

 

Bicho, bichinho, bichão,

lá na selva, pela casa,

à noite na escuridão,

na clareza do verão.


Foi Deus quem assim os fez

nossos parceiros naturais.

Seja no alto, em qualquer chão,


morando neste planeta,

cada qual tem sua vez

de viver na criação.

DOS BICHOS COM AFETO


Cyro de Mattos

 

Meu cão na canção uivando,

músculos me festejando.

Mãos de meu gato tocando

no meu corpo fatigado.


Cantava em mim o canário

que eu deixei pelo cenário

do sem fim, doce manhã,

que com o sol chegava às seis,

para me tornar um rei.

Tinha meu galo que vinha

comer na minha mão milho.

 

Com esse foi que fiquei

tendo um bicho como filho

na alma sentida sem rinha.



SORTILÉGIO

 

Heloísa Prazeres

quase não posso sair lá fora

tomada de medos físicos dos pátios

da Bising. E quando me arrisco

vejo-o em treinos e estratégias de pedinte

enorme cauda sedutora arrasta-se

desliza sobre galhos e ocos

onde a natureza dorme e o visitante acode

avermelhado pelo sobre galhas

despidas suporta temperaturas 

que me tangem do alento

no primeiro inverno fora de casa

o esquilo é meu igual

mas bem diverso ele sabe e alterna

fases mais longas de sono

reduz sonhos gosta

mais e mais de habitar o meu quintal. Acorda

e vem buscar suas migalhas

 

habitante como nós indistinguível

em terra alheia vive o catador

de enigma e sustento


(Heloísa Prazeres. O tempo não detém a vida, 2023)

RECANTO DAS GARÇAS


Letícia Prata                                     

rosa rubra cobre o rosto

com seus feixes de plumas

cinza brancas marrons pretas


sua cabeça retraída

junto ao meu corpo

sua boca em busca do peixe

do sapo


soturno passos entre grades

pedra água

a confundir-me


e esse bico pontudo

em forma de lança

e esse bicho

a desvelar meu canto

                        

e esse silêncio solto

estátua presa

a espetar-me

voo cego de ave

 FRIDA


Letícia Prata

ela repousa como uma estátua

no parapeito da varanda

sabe-se divindade envolta

em pelos de textura luminosa

marrom cinza mesclada

observa e avança com

seu miado rouco e um medo

apertado nos olhos —

refugia-se entre cobertores macios

seu rabo passeia como uma antena

em compasso ritmado à espreita

do pulo certeiro

encara-me e salta —

dizem ter sete vidas

que toda bruxa tem uma

que é bicho tinhoso de garras afiadas

ela desvia e abana

transita entre objetos

(e nada derruba)

tudo capta e absorve

com sua escuta atenta

de uma analista de quatro patas

 

(Poemas inéditos, de Letícia Prata)


PEQUENA ARANHA


Uaçaí Magalhães Lopes


Pequena aranha, que teces?

Teces a vida ou a morte?

Que teces, pequena aranha,

meu destino, minha sorte?

Nossa vida é tão vazia.

Nossos destinos são teias,

que tecemos cada dia:

barcos singrando nas veias.

Pequenina, ao que parece,

tua teia não nos guia.

Nossa vida é que se tece


numa outra teia, ungida,

que se encontra em outra via,

para além da nossa vida.


O REI, O CEGO E OS ELEFANTES


                               Para o amigo Carlos Barbosa


Uaçaí Magalhães Lopes


Dispondo um Rei, mui sábio, um elefante,

a cegos que tocaram levemente.

Pediu-lhes a falar, naquele instante,

o que no toque, vinha-lhes à mente.


Primeiro um diz que a cauda é uma vassoura.

Outro compara a tromba, a uma mangueira.

O próximo, que a boca é uma tesoura

e o último a entrar na brincadeira,


afirma que um marfim é uma lança.

O Rei então percebe ali, na hora,

o quanto cada um a verdade alcança.

 

Pede a Tirésias, diga-lhes agora:

por que você é cego e a tudo vê?

- Com luz ou sem luz o mortal não crê!


MEU GATO


Uaçaí Magalhães Lopes

“Viens, mon beau chat, sur coeur amoureux”

Charles Baudelaire


“Prefiro os gatos aos cães não há gatos policiais”

Jean Cocteau


“O meu gato Saci é um dorminhoco”

Antonio Lopes

 Por que os poetas trazem uma sina,

ter um gatinho de estimação?

Nino já veio a mim como um traquina,

minha filha o trouxe da Estação.

Assim que ele chegou tomou o lar.

Como se fosse tudo, tudo seu.

Se ele quer algo mia para o ar...

e, para ele o mundo já entendeu!


Mas, minha amada trouxe uma gatinha,

a Lina, tão fofinha, a nossa casa.

Mas, Nino, disse logo a casa é minha!


E, com sua bengala e branca luva,

encosta-se em Lina, olhos em brasa...

Rosnando ser o próprio “Manda-Chuva”!

 

Salvador, 17 de fevereiro de 2019.


Os últimos três foram tirados do livro: Forma & Fraga, Sonetos. Itabuna,

Bahia: Editora Mondrongo, 2020.


O SABIÁ

Uaçaí Magalhães Lopes

Um sabiá não sabia,

que nasceu para cantar

e que a vida lhe daria

cada canto em seu lugar!

 

Certo dia, o abençoado

viu a andorinha passar

e ficou todo assanhado,

indo logo ela cantar...

 

A fêmea do Bem-te-vi

ouvindo o lindo cantar,

gritou: estou bem aqui,


sem saber do sabiá,

que gritou: eu bem te vi,

indo a fêmea agasalhar!


Uaçaí Lopes. SSA, 04/02/2024, inédito.


BORBOLETAS BAIANAS

Carlos Barbosa

tomo conhecimento das borboletas baianas,

não das que vejo nos jardins,

mas daquelas que voejam em casamentos

nossas borboletas fazem sucesso

em casórios Brasil afora

viajam de avião,

em caixinhas com furos para ventilação

as borboletas são exigência de noivos românticos:

querem com elas embelezar

Borboleta na mente surrealista de Salvador Dalí

suas histórias de amor
mas são caras nossas borboletas,

muito caras

precisam ser contadas

para o devido pagamento

e para tanto,

colocam as caixas por um tempinho em geladeiras:

é que assim as borboletas desmaiam

e é possível então fazer a contagem


por fim, as caixas são levadas ao pé do altar

e lá aguardam, pelo grande momento,

as sobreviventes

após o beijo do novo casal,

as borboletas são soltas

mas estão fragilizadas, tontas, combalidas

 

então o pessoal dá o último toque ao show:

batem nas caixas para espantar as borboletas

que se projetam no ar

em arquejo final de vida,

para morrer em seguida em pleno voo

ou onde quer que pousem,

depois de obterem o aplauso da plateia

e ares de extremo contentamento

dos nubentes,

aquele batalhão de borboletas baianas

borboletas que viajaram de avião

e desmaiaram no gelo

em suas curtas vidas de tortura e horror

para beleza e glória do amor


O DOMADOR DE PIRILAMPOS

 

Aleilton Fonseca

Jamais esqueço dos pirilampos

Que iluminavam a minha infância.

Eram respingos de luz nos campos

E são piscos de luz na lembrança.

Admirando, eu já contava cada 

Claro rastro de brilho no ar,

O ritmo certo do acende e apaga

Que ainda me faz imaginar.

O destino dolente rasura 

O passado que será futuro.

A sua garra pega e tritura

Os sonhos que rebrilham no escuro.

A luz piscante dos pirilampos

Que iluminaram a minha infância

Ainda alimenta meus encantos

E faz brilhar a minha esperança.



Poente. Lentos, silenciosos, caminho dos currais, os bois (FM)


POENTE AOS BOIS

Florisvaldo Mattos

 

Poente. Calcando vidro úmido da tarde,

lentos, caminho dos currais, os bois

historiam campesino silêncio de fazenda.

No olhar de melancolia e trabalho vespertino

passeia desnudo entre folhas cegas

um sacrifício comum de agrícola fadiga,

paisagem desesperada nutrindo-se

de sombras, de canção despedaçada

entre cedros e riacho.

Rústico vento sopra navalhando

biografias de pássaros camponeses

à espessura do azul macio cortando

cinzentos chifres campo couro.

De verde espuma aderida ao cerne dos minutos

com peculiar atividade de moinho

silencioso na sombra moendo sonhos,

sua boca preguiçosa os alimentos

(pranto e arbustos) na estrada rumina.

 

Nesta imobilidade do tempo

e das coisas umedeço minhas mãos.

Neste amargo cenário de pedra e vinho amargo,

rodeado de cercas e utensílios campestres,

meu rosto pesado umedeço.


Golpeando com asa mansa capim rasteiro,

água útil dos pastos, a cada ruído

arrasto meu coração ferido pelos sítios,

tranquilamente ando

e desando na atmosfera morna dos currais,

contagiado de espetáculo mudo de retorno

entre bestas de carga e tropeiros –

galope roto guarnecido de aflição –

cheiro rural de cascos pisando estrumes.


Com os bois (doridos bois)

na solidão profundamente sucedo.


(Florisvaldo Mattos. Reverdor, Salvador: 1965)


A BESTA SE CHAMAVA FORTALEZA


Florisvaldo Mattos


​                                            A besta era serena e atendia

                                   Pelo suave nome de Suzana.

​​​​                                                           Paulo Mendes Campos (“Infância”)


Se do Campos a besta era Suzana,

a minha se chamava Fortaleza.

Era nos pastos que ela obedecia,

leve e serena, quase comovida,

ao gesto só de manejar a rédea,

quando queria pássaros ouvir

ou bezerros tanger para o curral,

em conluio com aragens, logo cedo,

por descampados vastos, meu tesouro.

Quero viver de novo esta harmonia

de cores, sons, aromas e sabores,

no delírio em que a tarde se desmancha, 

com sussurros da brisa me avisando

que disso tudo a besta participa.

 

(Florisvaldo Mattos, Estuário dos dias e outros poemas. Salvador:

2016).

Pablo Picasso (1881-1973), Minotauro Moribundo, 1936

NA CASA DE ASTÉRION


Florisvaldo Mattos


Tecer no azul do céu a cor da morte

Ou no verde do mar, na branca espuma,

E até não perceber quando se arruma

A casa onde a brisa, última consorte,

Descerra a porta para o Minotauro.

Apenas ouço-lhe o ruidoso trote,

Com o trágico de Borges holofote,

Igual à solidão em que me instauro.

Ele vem devagar, de agudo chifre,

Na tarde melancólica, de sombra

Vasta, que me rodeia e que me assombra,

Passo a passo, a exigir que me decifre.

            Não sou Teseu, dispenso-me do luto.

            Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.


(Salvador, manhã de 05/03/2022, inédito)


ÉGUA DE JADE

Costumo amanhecer, o céu vislumbro;
O mar embaixo muge sossegado,
A orla estriada rege o som das nuvens;
O vento lança-me aos olhos (o rosto bebe)
O que sobra das ondas, claro dorso.
Eu que te procurei em luas, sol,
Mar e águas todas só agora te encontro,
No ardor dos pelos, fulgurantes olhos,
Animal sobre o oceano debruçado,
Na postura de alguém que sempre aguarda.
Pintura equestre de Franz Marc

Exaurido me apalpo. Sei que existes,
De ventre aberto ao mar, de espera rude.
Navegadores chegam, embriagados
De sonho, de cobiça e velhas perdas.
Sei que te ornam algas; vieste do Oriente.
Ou do Ocidente vens, em luz de pérola?
Que me enchem de desvairos cores novas.
A alvorada me beija? Nem sei se a tenho
Entre teus braços – trucidantes hastes,
Enlaçando mastros, extraviadas quilhas.
Foi boa a noite dentre pesadelos
Ruminados sobre teus passos, tua
Lenta navegação por entre torres
Em que te amarram cordas de silêncio.
Dorme a amada; o mar urde laborioso.
Estamos sós, eu e tu. E o mar, testante
(Leguleio de aromas e vivências)
Do que deixaram tardos marinheiros
Sobre a terra límpida, mas exausta,
Os bens que, de alma apenas, pó restaram.
O mar é o que te basta; é a tua culpa.
Por isso, nada esqueces, nada passa:
A memória a acender-te o labirinto,
A luz a reavivar o antigo rosto,
Espuma a te invadir adusto ventre.
Tua baía, escancarada porta
A quem te penetre água e terra adentro
– peixes, pássaros, luas navegantes –,
A boca lúbrica, emitindo toques
De tambores também lascivos, urra.
Fica em silêncio que já te cubro, égua
Fogosa, imersa em toldo florescente:
Te pego pelo casco, jade puro;
Te puxo pelas crinas rutilantes;
Te arranco das encostas em que pastas.
Vem, vem; se és de ouro, risco-te nas pedras.
Vem; se és de fogo, banho-te no mar.
Vem; se és de lua, lanço-te no céu.
Urras; ah, pela anca afinal peguei-te,
Égua translúcida da madrugada.

E após, na lassidão que disto sobra,
Batida pela brisa que ressoa
No côncavo de uma onda, desvaneces,
Além do cais onde dormitam barcos.
O mar te trouxe; estrela, o mar te leva.

(Florisvaldo Mattos. Mares anoitecidos, 2000. Poema sobre à Cidade da Bahia).


Carybé (1911-1997). Pescadores na Baía de Todos os Santos


DADOS DO AUTOR

Natural de Uruçuca, no sul do estado da Bahia (Brasil), Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; professor aposentado da Universidade Federal da Bahia; exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe (Diário de Notícias e A Tarde, ambos de Salvador). Foi correspondente e dirigente da sucursal do Jornal do Brasil (RJ) na Bahia, durante 21 anos. Em 1964, cumpriu pós-graduação de Aperfeiçoamento em Jornalismo Impresso, na Escuela Superior de Periodismo, de Madrid, Espanha.

Por mais de uma década (1990-2003), exerceu a editoria do caderno semanal A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como o melhor do Brasil no quesito de Divulgação Cultural. Desde 1995, é titular da Cadeira nº 31, da Academia de Letras da Bahia. Entre 1987-89 ocupou a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).

FM, Photolab, de Mauro Coelho

Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma Antologia, 2012; Estuário dos dias e outros poemas, 2017, Antologia poética e inéditos, 2017 (todos de poesia). Estação de Prosa & Diversos, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 2018 (3ª edição, Salvador: ALBA Cultural) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, em 2004 (os últimos de ensaio). Participou de antologias de poesia nacionais e internacionais. Publicou em 2022 a coletânea intitulada CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro (Itabuna-BA: Editora Mondrongo), lançado na Bienal do Livro da Bahia, em 12 de novembro, e uma compilação de escritos sobre Literatura e Arte, sob o título de Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais, lançado em 25 de abril de 2023, no Museu de Arte da Bahia.




Rockwell Kent (1882-1981) The Trapper (O Caçador de Peles)